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04 abril 2013

[Projeto Feérico] Trecho nº 2 - O Caminho do Fio de Prata

[começo da saga dos Eshus Ângela e Stardancer - para uma breve apresentação da interação dos dois viajando em um Trod desconhecido, esse foi um exercício de escrita muito bom para mostrar os lados emocionais e racionais de cada um. Angie tem no máximo 11 anos e Stardancer está cuidando dela por 2 anos]

A trilha no meio do nada era escura e nevoenta. O calor que subia da terra escura e fina fazia com que seus passos ecoassem de maneira assustadora. A mão que pousava em suas costas miúdas demonstrava que era para ela seguir a frente, mesmo que não houvesse luz alguma para orientá-los. O fio de prata que surgia aqui e ali era a guia temporária para que pudessem fazer um percurso seguro e sem problemas e sempre havia problemas em caminhos como aquele.

A cada barulhinho diferente, um chiado esquisito, uma pedrinha que era chutada sem perceber, tudo era razão para que seu Mestre Stardancer sair do modo enigmático para desferir um olhar feroz para a escuridão. Mas nada acontecia de fato, apenas o fio de prata, a estrada vazia e os dois caminhando cuidadosamente. Ângela se sentia inquieta. Não por estar na presença de alguém tão sábio e aventureiro como Stardancer, mas sim por estarem tanto tempo em silêncio. O Mestre não falara nada para onde iriam e como chegariam seja lá qual fosse o destino, Ângela não estava acostumada a isso, não em sua pouca idade quando era a Fome que se encarregava de guiá-la em praticamente tudo em sua curta vida.

Outro olhar feroz para o nada quando ouviram um arrastar na terra escura. Um escorpião quase transparente, de cauda pulsante passou por eles como se nem os visse. A curiosidade infantil e inocente fez o corpo de Ângela trocar os passos e seguir o caminho do escorpião. A mão antes guiava a deteve com uma força sobrenatural. Ela não exprimiu a surpresa e a pequena dor que sentiu ao ser puxada de volta para o caminho do fio de prata, mas lançou um olhar de estranhamento e questionamento para o Mestre.
- Não desvies de teu caminho, little girl... Somente os teus passos é que desvendam o Caminho de Prata... - após isso o silêncio se restabeleceu novamente, mas agora a sensação era diferente da confusão de não saber para onde estavam indo: Era a notória provocação que a impulsionava a perguntar coisas que não deveria.
- Para onde vamos?



- Por que a pergunta?
- Estamos caminhando há um tempão... Tem que ser pra algum lugar né? - o eshu mais velho acariciou o ombro que apertou tanto e ajeitou os cabelos negros da menina atrás de sua orelha pontiaguda.
- Só porque há um caminho não quer dizer necessariamente que haja um destino para se chegar.
- Tá, mas para onde vamos? - o Mestre coçou sua barba com certa impaciência e levemente conduziu a menina de volta para a caminhada.
- Trods são caminhos entre o Sonhar e o mundo Banal que vemos quando não Changelings... Cada Trod tem uma peculiaridade... - e apontando para além da escuridão para o que parecia ser a chama fraca bem ao longe. - Cada um tem um jeito de se atravessar...
- Para chegar aonde? - perguntou a menina espremendo os olhos para ver a chama que apenas Stardancer via. O Mestre suspirou e fez um carinho breve o ombro que guiava.
- Eireann... Muitas vezes nas nossas vidas veremos que um caminho não te leva a lugar algum. Às vezes apenas a jornada vale a pena para aprender seguir outra trilha.
- Não tem placa não?
- Não, não... Não há placas... - sorriu o mais velho com a cara confusa da menina. - E esse é o mais importante. Placas pode te afastar da verdadeira trilha...
- Porque as placas são pintadas por gente chata e cinzenta...?
- Você quis dizer Pessoas Outonais? - a menina confirmou com a cabeça. - Sim... Elas não fazem por mal... Apenas estão conectadas a algo inferior a elas.
- Tevelisão? - a menininha tentava acompanhar os passos largos do Mestre. - Eu não gosto de tevelisão, muito chato. Muito parado. Não deixa a gente pensar. E tinha esse amiguinho no orfanato de St. Louis que não parava de falar de desenhos animados chatos com animais que falavam e batiam um nos outros e que ele achava engraçado. Mas não é engraçado bater em animais? E animais que batem em animais é mais ruim ainda, não é Stardancer? - o mestre a olhava do mesmo modo quando ela tagarelava sobre a vida de antes. Cheia de entusiasmo, mas com uma profunda mágoa que apenas o Eshu mais velho poderia sentir.
- Eireann... Olho na estrada, passo acertado? - indicando o fio de prata que reapareceu fraco debaixo dos pés da menina.
- Pessoas Outonais influenciaram esse Trod... - murmurou ele para o Céu negro de poucas estrelas. Vasculhando algo em sua bolsa, ele tirou o que parecia ser um palito de madeira escura achatado.
- Tinha picolé aí e nem me ofereceu? - esganiçou a menina curiosa com o que aquele palito iria fazer. Da última vez que Stardancer retirou o palito de picolé estranho da bolsa foi para acender uma fogueira na hora do descanso que tiveram ao atravessarem o Mar Cáspio em direção a Turquia. Lá sim havia sido um lugar interessante. E peixe assado com tempero esquisito, mas gostoso, e brincar com felinos selvagens que a maioria das pessoas tinham medo até de pronunciar o nome. O Mestre levantou o objeto e apontou para a estrela mais visível daquele lugar tenebroso, a resposta foi pálida, um leve piscar da estrela acionou uma runa pequenina inscrita na madeira achatada, Stardancer olhou para a menina, a menina olhou para ele, os dois olharam para o chão. O fio de prata tremeluziu quase enganchando na perna da menina. - Cê sabe que isso não faz sentido algum pra mim né?
- A vida é ilógica, Eireann... - tirando o fio de prender no sapato dela. - Será que o tempo que passou entre teus parentes humanos não te alertou sobre isso.
- Não muito... Pessoas são estúpidas, só isso... E chatas... E esquisitas...
- E a vida?
- O que tem ela?
- O que achou de sua vida até então?
- Ela não ligava pra mim... - o mestre tombou a cabeça intrigado, mirando a menina com olhos de íris liláses tão penetrantes que a menina sentia quando eram de seriedade ou de curiosidade. - Ela não tinha meu telefone... - Stardancer sufocou o riso alto pela espontaneidade da garota - Tá rindo do quê?
- És mais esperta que suponho que sejas, Eireann... Cuidado com os pés. Eles te levam longe quando sabes onde pisa, mas se fica parada tempo demais... - indicando os pés da menina - Se torna mais difícil para voltar a trilha certa...
- Oh! - a menina se espantou com o fio prateado que brilhava intensamente abaixo de seus pés. - É esse o caminho é? - Stardancer concordou. - Tem explicação para isso? - o mestre deu de ombros. - Você não gosta de falar muito direito com as pessoas, né?
- Pessoas são estúpidas... chatas... esquisitas... - repetiu o mais velho com um tom de zombaria, a menina riu um pouco, tapando a boca para não ecoar naquele lugar silencioso. - Aprendemos cedo que falar é a menor de nossas preocupações...
- Mas falar é bom... Como é que a pessoa vai saber o que você quer?
- E queres alguma coisa?
- Um belo prato de batatas cozidas com manteiga e sopa de galinha...
- Eis algo que teremos que trabalhar, little girl... - bagunçando a trança atrás das costas dela.
- Mas você não me respondeu! Por que não fala com as pessoas? Tem tanta história boa que você conhece para ser contada!
- As pessoas só ouvem o que querem ouvir, little girl... - murmurou o eshu em um desabafo. - Elas não ouvem o que nós falamos. Por isso contamos histórias... Contar uma história é mais aceitável para eles do que ouvir a verdade.
- E se não houver verdade alguma? - o mestre virou-se indignado para a menininha. - Se só forem mais uma camada de geleia de Realidade em cima de Realidade. Pensa bem... Cá estamos nós andando nesse breu esquisito, quem diria que é verdade? Para o resto do mundo isso nem existe... Então se pegar a quantidade de gente que não acredita que esse caminho exista... - a cada palavra que a menina proferia fazia com que o fio prateado cintilasse em certos pontos do caminho. - Então vai ter algo assim que não existe mesmo né?
- É um bom modo de se colocar as coisas...
- Tipo eu te encontrar... - indicando o mestre do lado com um ar todo adulto - Era praticamente impossível eu te conhecer em condições normais de conhecimento. Nunca que você iria olhar pra uma menina mendiga. Nunca que você prestaria atenção em mim. Mas aí estamos nós, você presta atenção em mim...
- Da onde tirastes estas conclusões?
- Lucille me disse que você é importante. Que viaja muito, não deve ter tempo de olhar muito quem está catando comida nas lixeiras...
- É exatamente aí que te enganas, little one... Observar as lixeiras é meu dever como Eshu...
- Ahn?! Tá maluco?
- Maluca é você por pensar que isso seja coincidência. Meu encontro contigo foi forjado há Eras, antes mesmo de nossos ancestrais nascerem. E o que está escrito, jamais será apagado. Um eshu encontra o outro pelos caminhos do Destino, lembre-se disso.
- Quer dizer que você brotou do chão e pronto...? - o mestre sorriu para o chão e a olhou de soslaio.
- Não broto do chão. Não tenho raízes, não tenho ao que me segurar.
- Então por que eu?
- Por que eu? - ele repetiu com a mesma vozinha dela. A menina estranhou e franziu a testa. Deu de ombros, fez cara de indecisa, tentou exprimir algo em palavras, mas estava completamente sem ação.
- Foi você que apareceu oras!
- Mas apenas apareci se você não tivesse aparecido...
- Eu nem te conhecia!
- Pois eu já imaginava esse encontro há muito tempo. - a frustração de Eireann divertia Stardancer. - Deixe-me adivinha? "A minha cabeça explodiu?"
- Tá imitando as minhas frases é...?
- Apenas aprendendo aos poucos com a menina eshu ao meu lado... - beliscando a bochecha dela e recebendo um rosnado em resposta.
- As pessoas estúpidas, chatas e esquisitas... Elas não sentem falta de você? Não sente falta deles?
- O pouco que fiquei com eles, não me agradou.
- Tão ruim assim?
- Desestimulante.
- Você tinha amigos? Família?
- Amigos, apenas um. Que se foi há muito tempo. Família? É, posso ter tido algo parecido com isso. Minha família é você agora.
- Nossa... Foi bem chato, hein? Como é que você virou assim?
- Virei o quê?
- Isso que é agora...
- "Isso" tem nome Eireann, e já te expliquei...
- Um cara que tira fotos. Isso é não emprego de verdade é? - o coração de Stardancer pulsou nos ouvidos. Aquela pergunta pragmática que todos faziam estava nos lábios de quem jamais queria que falasse.
- Realidades. Eu capto Realidades... - ele respondeu resoluto em fazer aquela dorzinha lá no fundo se transformar em conhecimento ávido para a menina captar e discernir o verdadeiro motivo da caminhada.
- Dá dinheiro?
- Isso importa?
- Coma torta! - ela respondeu rapidamente sem pensar na seriedade da conversa. Stardancer abriu um meio sorriso e levantou uma sobrancelha para alertá-la que passara dos limites do razoável. - Tá, tá... - a menina encolheu os ombros imediatamente e ficou a mirar o chão que pisava.
- Quando eu era pequeno, meus pais brigavam muito... - a narrativa começou pausada, sempre com Stardancer mirando longe ao horizonte e Ângela com os olhos atentos no rosto do mestre Eshu. - Gritos era o que eu mais ouvia. Palavras ruins, palavras feias, palavras que feriam a alma de quem as ouvia.
- Adultos podem ser tão manés... - ela murmurou com certo rancor, o mestre a cutucou na nuca, a fazendo dar um pulinho de riso descontrolado.
- Minha vida foi permeada de muito barulho. Por isso peço tanto silêncio enquanto estamos nessa caminhada. Silêncio é ouro nessas horas... - após andarem por mais alguns passos, foi a vez de Stardancer não conseguir conter a vontade falar. - Prezo as imagens mais que palavras. Imagens podem mostrar mais que linhas escritas por uma mão calejada. Há muitas maneiras de se enganar as pessoas através dessas linhas, já em meu ofício não tenho tanta ambição em mostrar uma Realidade que não condiz ao mundo que estou vendo. Tiro fotos. Fotografo pessoas. Registro seus cotidianos, é o que me basta. - a menina havia franzido os lábios para poder entender melhor o que o Mestre explicava. - Ouvir e escrever são Artes muito injustas, Eireann, algum dia você irá saber...
- Mas o que isso tem a ver com a tua família?
- Em meu Livro da Vida, eu os risquei da minha história, apenas isso.
- Ainda não entendi.
- Por que então buscou a pergunta?
- Porque é isso que faço, ué?
- Você não é só feita disso...
- Se você não me deixasse com tantas dúvidas nas caraminholas, eu não faria tantas perguntas. - o mestre virou-se para ela com uma cara duvidosa, um misto de curiosidade e de indecisão.
- Todas as suas perguntas são motivadas pelo "Porquê" Eireann. Isso que me incomoda.
- Por quê...? - a menina deixou escapar sem poder conter.
- Você pensa demais em coisas que originalmente nem deveriam ser racionalizadas... - e apontando a longa estrada. - Por exemplo nossa caminhada... Não questionastes ainda o porquê de estarmos andando há horas por aqui. Apenas me perguntou qual era nosso destino.
- E você falou que não precisa ter destino algum. Tá valendo...
- "Valendo" o quê?
- Para onde você for, eu vou. Essa é a meta.
- E não se pergunta o porquê?
- Algo me diz que o senhor vai me dar a resposta pra isso quando sairmos daqui.

- Já estamos chegando?
- Não ainda...
- Cê nem sabe onde tá, né?
- Por que acha isso?
- Quem faz as perguntas de "porquês" sou eu, lembra?
- Estamos chegando.
- Como sabe? - um suspiro longo foi a resposta. Ângela franziu os lábios em descontentamento e voltou a arrastar os pés na terra estéril.
- "Porque "eu sei.
- Não deveria falar isso.
- E "por quê" não? - provocou o Mestre adorando a reação da menina.
- Paaaara de zoar com a minha cara! - sapateou a eshu mais nova frenéticamente. Instantes depois ela retomou a postura e o silêncio.
- Você quer respostas, estou te dando.
- Não as respostas que deveriam ser dadas...?
- Posso me reservar a não dizer as respostas certas. Curta a jornada, little girl... Saberás que após essa viagem, tua mente e tua alma estarão em sintonia com o Caminho Prateado tão bem quanto eu.
- Um caminho que não leva a lugar algum... - bufou ela verificando se havia algum outro biscoito na bolsa tira-colo do Mestre, este deixou ela se intrometer com as mãozinhas em sua bolsa e pegar justamente aquilo que ele queria que ela pegasse: um tablete de chocolate que Ângela dissera certa vez que fora a coisa mais gostosa que comera na vida. A expressão da menina foi de ranzinza para um contentamento sem fim ao ver a barrinha de chocolate. Mesmo que fosse um produto banalizado, industrializado, cheio de produtos químicos tão nocivos a essência da menina, Stardancer sabia que o efeito da barrinha de chocolate era bem maior que esses efeitos menores de banalidade. - Posso? - ela perguntou já sabendo a resposta.
- Manda a ver... - ele respondeu divertido. A menina praticamente mordeu metade do chocolate na primeira dentada e saboreou cada sensação que o chocolate causou em seu paladar.
- Nomnomnom...! - ela opinou com a boca cheia e fechando os olhos devagar para apreciar o momento.
- Ângela...
- Nhoi?
- Nada não... - respondeu ele com um leve sorriso e pegando um chocolate para si.

Os minutos se prolongavam, formando horas de caminhada em silêncio e mistério. O céu escuro acima deles não mostrava diferença alguma de quanto começaram, mas a pequena eshu sentia que o terreno havia mudado em alguns pontos. Por outro lado a sua impaciência juvenil a dizia que estavam andando em círculos, mesmo nem sabendo por onde andava. Às vezes via o fio prateado seguindo uma linha tênue embaixo de seus pés, às vezes não. Em muitas vezes preferia ficar admirando as estrelas pálidas do céu denso e lançar um olhar de desafio para o homem que a acompanhava desde muito tempo. Ângela pensava em Stardancer quase o tempo todo, admirada com os poucos feitos que sabia dele e do modo extraordinário que ele se apresentava, mas muito da admiração vinha do mistério que continha nele. A pequena eshu não sabia quem era seu Mestre, de onde ele vinha e de onde surgira. O que mais incomodava na verdade naquele silêncio horrível era saber o que ele queria dela. Caminhar em um Trod escuro e silenciosos? Tudo bem, mas seguir um caminho que não existia por dias a fio sem ter explicação alguma?
Virou-se mais outra vez para o Mestre e o encarou por um bom tempo, ele murmurava mudo uma canção qualquer , olhos atentos ao caminho e passos moderados para não deixar a menina para trás. Stardancer sempre fora assim para ela, um punhado de mistério e de determinação. Ele conseguia o que queria quando queria, ele tinha o necessário quando precisava e jamais vira alguém tão obstinado e certo de seus objetivos como ele. A menina queria ser como ele quando crescesse em um futuro bem distante, mas além disso, queria estar sempre com ele, pelo que viesse nesse futuro.

O silêncio perturbava agora o eshu Stardancer, tão acostumado a fazer essas viagens entre Trods desde quando era um infante. Agora a responsabilidade era outra, era manter a pequena Ângela na trilha e atenta aos desafios que viriam. Nada era fácil quando se passava por um caminho escuro como aquele. Distraída em sua inocência infantil, a menina ia conforme os passos que o Eshu mais velho dava, mas Stardancer ainda sentia uma certa resistência vindo dela, algo que a Banalidade que a afetara tanto nos tempos de infância que talvez nunca purgasse com o convívio. Respirou fundo e apressou os passos, a trilha logo se apagaria se ficassem por muito tempo ali. Olhou várias vezes para o céu escuro e de poucas estrelas e nenhuma delas dava uma pista exata de onde poderiam encontrar a próxima saída. Uma chama azulada subiu imperceptivelmente entre o que se dava para ver do final do fio prateado e uma pedra irregular mais a frente. Seus pés velozes foram urgentes para chegar aquele ponto antes que tudo se perdesse.

A menina em sua tutela resmungava sobre estar com fome. A Fome que a desviava dos pensamentos e da meditação. A Fome de comida para disfarçar a Sede do Conhecimento, Ângela não conseguia disfarçar essa faceta glutona do Mestre: Ela comia para não perder o momento, e fora isso que impressionara Stardancer desde o princípio. Mais outra fagulha e esta foi mais forte, sinalizando mais outro fio na Estrada sem Fim naquele noite escura. O calor do ombro que segurava findou e ele foi obrigado a se curvar para alcançar Ângela em sua corrida esbaforida.
- Você viu? Você viu? Hein você viu?!
- Little girl, não se afaste assim! - o tom em sua voz assustou a menina, que virou-se na escuridão o encarando com os olhos tão negros que tinha.
- Mas eu estava...
- Precipitar-se na Estrada Vazia é perigoso! Em caminhos assim não sigas o que teu coração impulsivo manda e sim tua intuição!
- Mas meu coração nem quis correr...
- Mantenha-te na trilha que faço. Preste atenção onde pisa e principalmente, ouça ao teu redor. Estás perdendo muito da sabedoria do Silêncio e o Vazio.
- Se eu ficar mais em silêncio, a minha cabeça explode? - a menina deu de ombros comicamente, o Mentor teve que esboçar um meio sorriso e com algumas palmadinhas no ombro ossudo da menina eles continuaram a seguir para a Estrada que levava a lugar algum.
- Apenas fique ao meu lado little girl... Não quero te perder nesse caminho esquisito.
- Arrám, parou de falar em charadas! - a menininha apontou para o nariz do Mestre, este pigarreou para recompor a postura e a colocou de volta no caminho que a chama azulada apontara. - Por que parou de falar em charadas? Você sempre fala em charadas... As pessoas não entendem sabe? Falar em charadas é legal, mas se você fala o tempo todo, não tem como alguém...
- Palavras são violentas para aqueles que não sabem ouvi-las... - os ombros da menina tombaram e ela soltou um chiado tedioso.
- Começou de novo...? - a caminhada se arrastava agora para a segunda hora, o Eshu estava tenso, na verdade estava chegando à beira do nervosismo. A fagulha que iluminara aquele fio de prata se apagara.
- Enquanto seus pés se moverem na trilha certa, mantenha a boca fechada, sim? - a menina o olhou com confusão. - Aproveite o silêncio, ele te trará respostas mais concretas que palavras proferidas por uma língua vã...
- Tudo bem... - a menina girou os olhos e ficou a mirar o chão escuro e poeirento. Seus sapatos novos estavam completamente cobertos por aquela fina camada de terra infértil e suja. Logo o silêncio foi interrompido quando a barriga de Ângela roncou sonoramente, Stardancer parou por um instante e suspirou de leve, iscou algo dentro de sua bolsa de viagem e entregou a menina: Era uma grande pera verde e madura, a primeira dentada foi rápida e cheia. - Nomnomnomnom...
- Aproveite a refeição e pratique o silêncio, menina Eireann...
- Nomnham?! - ela perguntou de boca cheia, o Mentor vasculhou o chão novamente e encontrou o fio prateado sendo omitido pela fina camada de terra infértil. Ele ficou um tempo ali a examinar a finíssima linha e fazer medições. - Tá procurando o quê? - ele pediu silêncio imediato e fungou o ar abafado, com um leve puxar no fio prateado, ele sentiu o peso de todas as estrelas em seu peito. Algo muito errado ali estava prestes a acontecer. A menina devorava a fruta e não percebia ao seu redor, até que o zumbido ensurdecedor e ecos de patinhas vibrando o terreno em que estavam. - Que é isso? - a menina sussurrou olhando o horizonte sem linha alguma. Algo raspou pela sua perna e ela pulou no lugar onde estava soltando um gritinho infantil de puro terror. - M-mestre Stardancer...?
- Eireann!! - gritou o Eshu oficialmente alarmado. O turbilhão de zumbidos agora afastava sua percepção feérica para sentir a discípula, o retumbar incessante de pinças encostando ao chão o deixou terrivelmente abalado. Logo o mistério na noite sem luz foi revelado: Um exército insetóide se preparava para um ataque eminente.

A sombra nevoenta de uma perna de inseto gigantesca produziu uma sombra falha no chão arenoso, a menina Eshu parou em pânico onde estava, sentindo o suor brotar no rosto pequeno e suas mãos tremerem por debaixo das luvas sem dedos.
- Não posso sentir medo... Não posso sentir medo... Não devo sentir medo... - ela repetia em um mantra que o Stardancer havia ensinado (Mas como era uma infante ainda, Eireann não pegara exatamente as palavras certas) - Medo não pode me vencer... - o ruído agonizante de uma fechadura de ferro sendo aberta, seguido pela dobra enferrujada de uma portinhola abrindo a fez estagnar no chão, olhos arregalados para todos os lados, segurando bem seu estômago que roncava.
- Pobre menininha... Como ela está sozinha e perdida... Quem foi o malvado que te deixou assim?

A dança de Stardancer era algo exuberante de se ver, muitos Changelings presenciaram o momento mais alto do notório Eshu, lançando partículas de Glamour para todos aqueles que eram bem vindos, iluminando as festas da propriedade livre com a cantoria grave, as palmas fervorosas e a dança. Almerian poderia fornecer a melodia harmoniosa e contagiante, mas a dança de Stardancer era de longe a parte preferida de muitos que o conheciam e conviviam perto dele. Mas poucos viram a dança das foices de Stardancer. Poucos sobreviveram, na verdade.

Agora ali, sozinho, apavorado por perder a menina que tanto prezava em manter em sua tutela, cercado por escorpiões irritantes, com seus modos irritantes e o som... O Eshu balançou a cabeça para se concentrar em sua dança especial, aquela que guardava contra os Inimigos do Sonhar, os perturbadores do Equilibrio, aos Pesadelos (E esperava que aquilo não fosse um) e aos Nervosae. O barulho intenso insetóide tomava conta de todos os lugares, inclusive de sua concentração. A foice de mão que se projetou de sua correntinha tão bem guardada debaixo da fivela de couro que amarrava fortemente ao pulso estava trêmula, com o apoio da outra mão manteve o controle, mas estava longe de conseguir projetar a outra arma que tinha contra os inimigos ferozes.

- Sei não, tio... Ele não é malvado! - respondeu a menina verificando todos os cantos para identificar de onde vinha a voz boa de se escutar.
- Mas olhe só você... Como está suja e desarrumada... - a barriga de Eireann denunciou outro delito - Ooooooh e com fome? Venha, deixe-me te dar de comer...
- Quero não. Tou bem aqui. Me alimento de biscoito de vento. - a menina respondeu rapidamente disparando em uma corrida alucinada para onde pensava ter visto uma chama azulada. Foi interrompida por um homem de cartola, tão alto quanto Stardancer, impecavelmente vestido em um fraque vitoriano de botões dourados e vermelhos, cabelos cor de palha e exageradamente lisos. O sorriso era doentio e o rosto macilento também.
- Biscoitos de vento, NÃO ME SUSTENTAM!!

Quanto mais recuperava o fôlego em sua dança das foices, mais daquelas coisas apareciam. brotavam do chão assim que atingia um punhado delas, aos montes, se aglomerando em seus pés e o fazendo saltar, chutar, pisar e praguejar contra os asquerosos insetos. Em uma girada desesperada para se afastar de ferroadas que não atingiam sua pele, mas sim o cano da bota tão protegida, ele atingiu algo maior. Algo que ele já reconhecia o barulho do guincho.
- Oh droga...
A quelícera o pegou pela cintura e o elevou alguns centímetros do chão, a inquietante sensação de prisão o fez se mexer demais e rasgar sua carne em ambos os lados, foi quando a sua segunda arma decidiu dar notícias. A corrente prateada com a estrela de 5 pontas atingiu a Traiçoeira bem no rosto. Espalhando faíscas de luz intensa e um rastro prateado ao chão, trazendo a Verdade para ele. A Inimiga de muitas Eras o soltou e contorceu-se para longe da luz que a boleadeira prateada de Stardancer produzia. Ele finalmente renovado pela confiança da arma em seu espírito, recolheu-a rapidamente e com um movimento imperceptível girou-a o mais rápido que poderia. O vento uivou junto com a corrente e o silvo produzido pelo ar atritando na extremidade estrelada fez com que os escorpiões se afastassem acuados da força interior do Eshu.
- És um tolo ao pensar que meu alvo será sempre você! - guinchou a Traiçoeira desaparecendo na escuridão e deixando seus fracos combatentes sucumbirem a golpes de boleadeira que Stardancer desferia em um ritmo quase melódico com o silvo do vento. A infestação de insetos foi diminuindo, em nuvens de derrotados que desintegravam no ar ao tocarem os golpes velozes de Stardancer.
A foice em sua mão ficou firme e estável, era hora da dança recomeçar.

- Sai de miiiiiim!! - gritava Eireann correndo com os braços agitados em volta da cabeça e pulando como uma cabra montanhesa enquanto um decrépito senhor de cartola impecavelmente vestido a perseguia em passos tão lentos quanto as de uma tartaruga.
- Venha aqui! Dê-me de comer! Quero seus Sonhos! - a menina mostrou a língua para o decrépito e fez um som rude.
- Os Sonhos são meus! Arranja os teus, seu bobão!
- Eu não posso mais Sonhar!
- Problema é TEU! - a menina pegou um torrão mais grosso de terra e atacou no velho. A confusão do ser decrépito com a terra seca em seu rosto macilento e fundo atrasou sua perseguição, mais ainda. Eireann, como era de se esperar, continuou a provocar. - Velho chato! Come os sonhos dos outros é? Deixa de ser mané!
- Sua pestinha imprestável, vou sugar o Sonhar de teus ossos até não sobrar mais tutano!
- Velhote com voz de serrote, não alcança nem uma tartaruga com tique no cangote!! - ela cantarolava em círculos em volta dele e em uma dancinha frenética de quem está adorando saber como subjugar o inimigo.
- Pare, PARE!!
- Olha o velhote com voz de serrote, tão bobão que...
- Eis que a Traiçoeira dá o BOTE!!
- AAAAAAAAAAAAAAH!! - uma mão gelada e de dedos finos puxou o gorro de seu casaco e a arrastou por alguns metros para longe do decrépito.
- Por que demorou tanto? Estou com fome! - esganiçou o velho. Eireann foi jogada com força ao encontra de barras de ferro frio, a sensação ao encostar naquelas coisas foi de enjoo completo, forçada a regurgitar a pera tão carinhosamente ofertada pelo Mestre, ela caiu de joelhos sem forças. Estava em uma jaula.
- Stardancer está aqui. O que mais poderia me atrasar?
- Nhé, nhé, nhé. Você e Stardancer... Case com ele, vai! Fique com ele! Tenham filhos juntos! - resmungava o velho pegando algo do chão e mastigando com voracidade. A menina Eshu sentiu outra ânsia e se prendeu para não fazer mais nada, era um escorpião pela metade ali na mão do velho.
- Não subestime a vontade do Andarilho do Caminho Prateado! Sabes muito bem o quão perigoso ele é... - e se virando para a jaula magicamente conjurada. - Essa perdida aí logo irá cair na Banalidade. Um desperdício de tempo ele tentar reavivá-la.
- Cala essa boca sua aranha gordona! - gritou Eireann ralhando com as mãos na grade, foi percebendo que sua cabeça zunia e seu corpo amolecia conforme ficava muito tempo tocando a grade. Soltou as mãos e gritou de dor ao ver que elas estavam chamuscadas nas luvas e queimadas por dentro. Gritou mais alto ao ver o estrago que fizera nas mãos, a pele pulsando, as erupções, a sensação de estar sendo drenada aos poucos.
- A palavra "gordona" não existe, menina tola. O apropriado seria "gorducha" ou "indivíduo de peso acima do estabelecido".
- Vai se ferrar, porra!! - a menina chorou soltando seu primeiro palavrão na vida. - Odeio gente que me corrige...
- Oooooh além de imunda, esfomeada é atrevida com as palavras? Tsc, tsc, tsc... Aquele perdido jamais deveria ter pego você para treinar... Ele é o pior caso de atrevimento que já tive...
- Estou com Fome, Traiçoeira... - resmungou o decrépito com uma voz embargada de manha. Recolhida em sua dor física, Eireann percebeu que o velhote era parecido com ela, catando escorpiões do chão e os devorando sem ligar se o picavam antes de morrer pelas dentadas, comia as partes duras e rudes e também o ferrão afiado. Um esfomeado que nem ela.
- Estás com teu jantar bem ali. Devo te encaminhar uma solicitação para entender o que quero dizer? - o velhote negou com a cabeça e foi até a jaula onde a menina estava. Eireann se afastou imediatamente.
- Tenho fome... Muita fome...
- Sai fora, seu bafo de onça!
- Sair para fora é redundância, querida...
- CALA ESSA MALDITA BOCA!! - gritaram o velho e Eireann ao mesmo tempo. A menina tapou a boca quando percebeu no que havia acontecido. A voz do velho e dela era uníssona, de mesmo timbre e mesma tonalidade.

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