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30 agosto 2013

[Projeto Feérico] Trecho nº 3 - Estrelas estão no chão

A conversa não era tão amena como costumava ser. Havia aquela sensação de urgência disfarçada, às vezes palavras escapavam sem poder se conter. Na maioria das vezes era melhor respeitar o maldito silêncio que pregavam do que ter uma conversa amigável.
 - Andas muito quieta. Aprontando alguma? - a voz ao seu lado a fez sair dos pensamentos difusos que tinha para o próximo plano. Não era tão arriscado, mas precisava ter certeza que nada sairia errado. Não desta vez. Havia muita coisa nas entrelinhas para alguém perceber no que realmente aquela caçada a quimera-ônibus-escolar realmente significava. Ela fora o começo, e pelo jeito seria o fim.
 - Não que eu saiba... O clima não tá muito bom pra travessuras... - respondeu apenas abanando a cabeça com uma das mãos enluvadas.
 - Perdes um pouco do brilho quando o Inverno chega.
 - É esse vento frio chatonildo... Não gosto de ficar tremendo que nem vara verde... - o homem ao seu lado riu baixo, como se estivesse esperando aquela exata resposta. Tudo com ele parecia ser tão esperado e constatado, ele sabia de absolutamente tudo sobre ela, e ela apenas sabia que seu Dom da Sina não adivinhava nada sobre ele. Deu de ombros, não poderia reagir de outra forma. Quando criança ainda tinha fôlego para discutir sobre os encantos e adivinhações enigmáticas do Mestre, agora que passava para a vida adulta aprendera a escolher bem as palavras com algumas pessoas. Os dois mirando a escuridão do céu limpo do Inverno na Metrópole era como um ritual de entendimento solidário e solitário. Cada um em sua forma de se expressar carinho. A aprendiz cobriu a cabeça com o capuz felpudo de seu casaco, soltou um suspiro de frio e viu a condensação do ar formando em volta de seu rosto pálido, gostou do que viu. - Cê acha que vai nevar?

 - Acredito que sim...
 - Porque com esse frio tou esperando ver pinguins, ursos polares e focas... - ela suspirou para o clima gelado, brincando de soprar a condensação em diferentes formas. O Mestre se juntou a brincadeira, assoprando algumas formas com mais delicadeza, ela sorriu divertida para ele, ele piscou para ela de soslaio. Era assim que se entendiam, mesmo com os silêncios ao redor.
 - Tirei fotos de um urso polar uma vez em uma viagem... - ele lembrou com o rosto marcado pela cicatriz de forma mais jovial e curiosa. 
 - Sim, sim, você chegou a me mostrar... - ela respondeu com entusiasmo. Levo sempre comigo na mochila.
 - A foto do urso polar?
 - Não, o seu álbum de fotografias. Aquele com capa vermelha...
 - O de capa vermelha? - o Mestre ficou surpreso pela informação. O único album que Gaimer Jones conservava com suas fotos favoritas não ousava sair da escrivaninha do Mestre Nômade, mas a menina gostava de levar lembranças com ela em suas andanças. O mais velho riu-se com certo estranhamento, porque ela carregaria um album tão pesado na mochila de viagem, ensinara muito bem que quanto menos bagagem, melhor nas trilhas do Caminho Prateado. - Aquilo pesa.
 - Eu sei. - ela deu de ombros novamente e era secretamente uma das coisas que Stardancer mais ficava irritado com sua aprendiz. A indiferença que ela tomava para si para expressar coisas realmente importantes para ele. Angie fungava agora para ver se o ar de seu nariz também condensava no frio, mas a teoria não funcionou, ela voltou a assoprar o ar com caretas cômicas para poder formar baforadas de vapor.
 - Deixe o album aqui na Raine. Será de bom uso para os mais novos.
 - Ia deixar lá na Propriedade do velhaco turrão, mas já que você disse...
 - É mais seguro.
 - Velho turrão é hierarquia. Eu não brinco com hierarquia. - a voz séria da aprendiz fez o Mestre a olhar assustado, impossível Ângela não querer desafiar as autoridades. Isso já fazia parte da personalidade anárquica da menina, um sorriso no canto dos lábios da aprendiz fez ele reconsiderar o estranhamento. Era claro que ela continuava a mesma, apenas mudara de tática.
 - Bom saber que você não comete os mesmos erros em ir de encontro com os elderes.
 - Se uma coisa aprendi contigo é que se for para sacanear de alguém, faça no melhor estilo: quando eles menos perceberem... E isso requer um tempo para ser maquinado... - ela gesticulou rapidamente com ginga. Os dois voltaram a roda do silêncio, devagar, quase parando, em um ciclo interminável de impressões e não-impressões. Stardancer suspirou impaciente (Uma das poucas vezes em que ele fazia isso perto da aprendiz) e a encarou assoando o nariz em um lenço de papel de cor berrante. - Odeio quando fica pingando os trem aqui... - o rosto vermelho pela fricção do papel e a irritação nas narinas o fez franzir o cenho. Queria dizer algo, apenas não sabia o quê. Talvez algo para tirá-la desse vórtice de obviedade que se encontrava, talvez algo sincero e ameno para ela se sentir segura (E isso era uma das batalhas mais difíceis de Stardancer com Angie: a insegurança da menina ultrapassava limites impensáveis), nada veio aos seus lábios, apenas seu olhar virou-se para a escuridão de estrelas fracas no céu invernal da Metrópole.
 - Fazia tempo que não olhava as estrelas ao teu lado... - ela concordou com um sorriso saudoso. - Lembras das constelações-guia? - ela concordou novamente apontando algumas estrelas.
 - Ursa maior, o Grande Caçador, Três Mariazinhas... Tá tudo gravado aqui na cachola, tio! Tem como sair mais não...
 - Gostaria de poder ter mais tempo para observá-las de mais perto. - confessou o Mestre sorrindo para os céus, a aprendiz o acotovelou de leve no braço e enganchou o seu braço no dele.
 - Cê tem todo o tempo do mundo, Stardancer...
 - Angie... Há coisas mais...
 - Na verdade, cê sabe que elas estão mortas né?
 - Quê? Quem? - a frase o pegara completamente de surpresa, porque ele sabia dessa teoria mundana do mundo científico, apenas se recusava a acreditar em tal disparate.
 - Tem algumas estrelas, elas estão já mortas faz mó tempão... Tipo, a gente só vê a luz delas trocentos anos depois? - o Mestre ficou desarmado, sentir-se vulnerável não era algo que Stardancer era habituado, mas ouvir sua aprendiz dizer algo tão ferino ao Sonhar dos Feéricos, isso sim o machucava. - O que é bem maluco, já que se eu tiver olhando pra uma estrela que já morreu, tipo, 500 anos atrás, isso quer dizer que pela contagem cronológica do Universo, nós é que estamos atrasados... Ou no passado... Ou sei lá... Vai que tudo que a gente vive na verdade é o passado-presente e o futuro não existe... ou o futuro é o presente mesmo e... Cê tá com dor em algum lugar? Que cara feia é essa?
 - Você acabou de dizer que as estrelas estão mortas.
 - É. Fato comprovado.
 - Estrelas. - ele enfatizou com um olhar penetrante, mas a menina não titubeou, parecia que ela nem estava ciente do que acabara de falar e o fizera sentir. Como um punhal afiado dilacerando seu interior, mostrando o quanto a influência mundana afetava Ângela de tal maneira que ela mesma não percebia no que estava fazendo.
 - É, estrelas. Puf! - ela fez um gesto dramático com as mãos como se algo explodisse.
 - Tens ciência que ao crer nessa premissa, estás concordando com o destruir do Sonhar?
 - E o dramalhão começou...
 - Posso não estar todo o tempo ao teu lado, mas sei que essas suas saídas noturnas não trazem benefício algum ao teu Tear e muito menos aos que tu inspiras. - a voz de Stardancer estava controlada, mas uma entonação dolorosa passava em uma vogal e outra, Angie percebeu na mudança de comportamento do taciturno e pensativo para o idealista e visionário, ela sentia falta dessa parte do seu Mestre, a parte tão cobiçada pelas senhoras da Corte, invejada por muitos Lordes e que haviam dado todo o espaldar de galante e misterioso de Stardancer. Mas ele não percebia o que ela via. E ele não via o que ela percebera.
 - Minhas saídas noturnas são de exclusivo interesse meu e de mais ninguém... - ela respondeu quase cantarolando, mas com uma seriedade incontestável. - Elas estão mortas, certo. É fato, sei que vocês mais velhacos sentem isso mais do que a gente aqui. Mas vocês passam tanto tempo olhando para os céus, admirando as estrelas e achando que elas vão resolver os problemas, sabe? Isso é burrice.
 - Angela, não tente me convencer de algo que nem eu mesmo me atrevo a imaginar. Sabes muito bem as consequencias.
 - Sabe qual é teu problema-mor? Você vem aqui fora, nesse frio danado, esperando que eu vá falar algo que preste ou sábio e ainda me vem com essa de eu não poder teorizar sobre estrelas?
 - Estás passando do limite. - ele chiou com a mandíbula tensa e os olhos mudando de cor, aquela conversa já estava saindo do controle e a interferência do Mundo dos Mais Novos estava impregnada em sua aprendiz, sua Angela, a menina que praticamente criou e cuidou, guiou e acolheu, ensinou e sofreu, estava acontecendo de novo, como um ciclo vicioso em sua vida extensa, a indiferença de Quentin, o olhar desacreditado do antigo aprendiz, as palavras desdenhosas. A garota não se intimidou, apontou para cima e fez uma cara de fuinha para o Mestre alterado.
 - Vocês velhacos sequer se importam o que acontecem com as estrelas que caem? - a pergunta fez Stardancer piscar algumas vezes, não pela audácia da menina, mas pela perspicácia. Nunca em séculos que andava entre os Mundos alguém questionara as estrelas cadentes e o que elas significavam para os Feéricos, era como um tabu, algo que deveria ser evitado de comentar, pois poderia trazer um agouro nefasto. - Pois eu vou dizer então: estrelas morrem, todos os dias. Não tem como negar isso ou tentar remendar os esquemas da supercola universal. Ela não prega tudo para sempre. E elas caem, e caem bem aqui onde a gente vive, no Mundo dos humanos, no mundo "deles", não no nosso. Então já saquei porque cê ficou ofendido, tio. É porque quando uma estrela cai, não tem mais volta. Ela deixou de ser morta para ser apagada. - o Mestre engoliu a indignação algumas vezes e firmou os ouvidos para ouvir o que ela tinha a dizer. Por mais estranho que parecesse, a interferência maléfica do Mundo Concreto não estava ali, talvez ele tivesse se precipitado em julgar dessa forma. - Só que nenhum velhaco, elder, ancião, matusalém da vida feérico teve massa encefálica e criatividade suficiente pra pensar: "mas o que fazer com essas estrelas que caem?", "não, não, vamos deixar elas quietinhas e esquecidas. Elas ofendem o nosso modo do Sonhar, o lugar delas é lá em cima inspirando as pessoas e não aqui na terra sem luz e sem vida." - a aprendiz estalou os dedos com força na frente do Mestre, ele estava ocupado tentando captar qualquer resíduo de energia pesada que os humanos costumavam colocar nos feéricos por não estarem na mesma sintonia de Equilíbrio. Não havia nada. - Oh, presta atenção... Tou falando bonito aqui...
 - Não sei se fico surpreendido ou se fico ofendido.
 - Espera eu terminar que aí você me diz se concorda ou não. Estrelas mortas caem todos os dias. Pra onde elas vão? - ela apontou para o chão. - Elas vão pro chão. mas nada se cria, nem se destrói, tudo se transforma! Então não importa o que os elderes digam ou o que as pessoas tentem evitar de ver, eu e você sabemos muito bem o que acontece com as estrelas que caem.
 - E o que acontece, Ângela?
 - Elas viram pózinho de pirimpimpim pra formar o Caminho Prateado... - ela sussurrou se fingindo de inocente.
 - Essa é a coisa mais absurda que já ouvi na minha vida. - o Mestre deu as costas para ela, rejeitando ouvir qualquer outra palavra vinda dela. na verdade Stardancer estava prestes a explodir de desgosto, raiva, mágoa e lembranças dolorosas de um mesmo aprendiz que começou a sucumbir ao cinzento dos humanos. Quentin fora seu primeiro e único aprendiz, e ninguém poderia vir depois dele, mas ali estava Ângela dos Ventos, proferindo calúnias ao Sonhar.
 - Ah qual é?! Vai me dar as costas de novo?! - ela questionou cruzando os braços, o capuz escapara de sua cabeça e agora seu rosto estava afogueado pelo frio intenso. - Toda vez é a mesma ladainha...
 - Volte para dentro, Angela, não temos mais nada o que conversar.
 - Quando elas caem é a gente que sabe colocar elas de volta no firmamento! - exclamou a menina produzindo um eco no quintal dos fundos do Hotel. Um cachorro solitário latiu distante. - Esse é o nosso trabalho! - Stardancer virou-se lentamente intrigado. - A gente levanta elas de volta, supimpa. Não tem segredo nenhum, elas morrem, a gente vê elas por um tempo por aí, elas caem, a gente descobre onde elas estão, alumina os trem delas e bota pra funcionar de novo.
 - Eu não sei o que dizer...
 - Eu também não! Imagina quando eu fui me dar conta disso?! É por isso que esse bando de velhaco mantém a gente circulando sem rumo por aí, porque eles não sabem o que a gente sabe e por não saberem, eles têm medo da gente levantar uma estrela que eles não querem que seja iluminada de novo...
 - Por favor, me diz que isso é uma metáfora... - suspirou Stardancer colocando o rosto entre as mãos.
 - Claro que é, tio! Você me ensinou a usar essa porcaria toda pra confundir as pessoas. E elas não sabem! Nós sabemos! E enquanto eles ficam pianinho olhando as estrelas procurando por inspiração, razão de viver e seja lá o que for, a gente já está 10 passos a frente, fazendo coisa muito melhor pro universo do que eles.
 - De quem você está falando exatamente?
 - Sério? Cê ainda não deixou cair a ficha?
 - Que ficha?
 - Homem dos céus! - foi a vez da aprendiz estapear a testa com força.
 - Nós não somos os guias, nós somos o Caminho.
 - Nós somos? É isso que você pensa que somos?
 - Tem outra explicação pra gente brotar na hora certa, no lugar certo, quando as pessoas mais precisam da gente? - ela rebateu com um pouco de choramingo na voz. - Eles podem fazer o que quiser conosco, nos encaixotar nos salões deles, enjaular em suas moradas, tirar o chão de nossos pés, nos machucar de todas as formas possíveis, mas no final o que sobra é o Caminho Prateado e eu tou aqui, poxa! Para de desviar o olhar! Eu não sou o Quentin! Eu não sou mais aquela criança! Olha pra mim como sua igual!
 - Não se atreva!! - gritou Stardancer, os punhos cerrados e os olhos lilases em um contraste doentio com a escuridão da noite. - Não se atreva a colocar o nome de Quentin nessa tolice que inventas!
 - Ele caiu, Stardancer e cê nem foi atrás dele para colocá-lo de volta... - o tom de Ângela era fantasmagórico, como se a voz dela estivesse duplicada com mais alguém. - Estrelas caem todos os dias e ninguém coloca elas de volta, eu caí e ninguém me ajudou a voltar. Até você, todo-poderoso, caiu! - apontando para a parte do rosto dele que tinha a cicatriz misteriosa. - Todos nós caímos e por que ninguém nos levanta de novo pros céus? Eu não quero fazer mais essa besteira, gitano... Tou cansada de ter que fugir dessa Sina em que nós dois vivemos... - o semblante de Stardancer se contraiu em um expressão de remorso, passando a mão nos cabelos com avidez e nervosismo. Ela descobrira, "quem seria o desgraçado que havia dito a informação mais secreta da existência dos Nômades do Caminho Prateado?", pensou o mestre O apelido antigo agora ecoava em seus ouvidos e as cenas de uma batalha tão sangrenta e sem lógica inundaram sua mente. - Eu tou aqui e não vou a lugar nenhum. E eu vou encontrar as estrelas que caíram, é isso que faço de melhor... Se você prefere dar ouvidos aos elderes e aqueles malditos pomposos nos troninhos felpudos deles, que seja... - ela deu de ombros de novo, não era indiferença, era pesar e derrota. O mesmo que ele sofrera quando perdera Quentin séculos atrás, quando seus amigos foram executados por um crime motivados pelo Amor Proibido entre os Feéricos, o olhar trocado entre eles decifrou a suspeita que Stardancer tinha desde que voltara: Ângela não possuía uma alma feérica nova como os Iuvenes carregavam em sua mocidade, era tão velha quanto ele e bem mais pesada de se aguentar, alguém muito denso para se lembrar. - E por favor, pare de olhar pra cima achando que as estrelas te guiarão na escuridão...
 - E por que diz isso, Ângela?
 - Porque o Fio de Prata enroscou no teu pé faz um tempão, mas não quer dizer que você precisa deixar esse troço ficar em volta do teu pescoço. - ela passou por ele sem dar mais um pio e entrou no Hotel, Toby varria a cozinha com um ar despreocupado (Mas na verdade ouvira tudo em alto e bom som).
 - Cruz-credo, já tava com medo dos vizinhos ligarem pra Polícia denunciando briga doméstica... - a garota apenas o olhou com lágrimas nos olhos e saiu em disparada pelas escadas até o andar de cima. O Mestre veio em passos lentos, deliberando cada momento da conversa, as metáforas o intrigavam, era um recado do passado o visitando novamente. - Tá bem aí, Gaimer?
 - Oh sim, sim... - ele afirmou com a cabeça - Apenas acertando uns ponteiros com ela...

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