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29 novembro 2013

[conto] conversações com alguém em particular


Os biscoitos delicados se esparramaram do pratinho decorado com entalhes prateados para o chão de cascalhos, pétalas de ipês roxos e areia fina e perfumada. As mãos desajeitadas que deixara cair o complemento daquele chá costumeiro antes do anoitecer não conseguiram alcançar o chão e limpar a bagunça feita, o nervosismo aparente da pessoa mais alta, suja e de aparência maltratada pelo tempo não deixava sua coordenação motora muito boa.

Quem apanhou os biscoitinhos delicadamente foi sua eterna musa, donzela tão afável e fagueira que o acompanhara desde criança quando ainda era uma pequena criança inocente no velho Eire. As mãozinhas delicadas da ninfa recolheram os fragmentos dos biscoitos finos e os colocaram de volta ao prato de onde haviam caído. Após um breve momento de silêncio constrangedor, o gesto convidativo da ninfa para o pratinho decorado foi aceito com um rápido gesto, mãos desajeitadas que trituravam o alimento, levando todos os biscoitos diretamente a boca. De boca cheia e mãos descoordenadas por muito tempo atadas às costas, mãos que não serviam mais para fazer absolutamente nada que prestasse quando era vivo, apenas o agarrar grotesco e trêmulo em cima do alimento que o serviam para aliviar sua doença.

A ninfa, graciosa em seu jeito de ser, perfumada naturalmente com uma fragrância de morangos e vinho branco, sentou-se a frente dele, serviu uma xícara de chá para si e em um pote de madeira entalhada serviu o de seu convidado inesperado. O suspiro satisfeito dado pela linda filha da Grande Floresta chamou atenção do mais alto - desconfiado do jeito que sempre fora - agora tentava se lembrar como era o comportamento de um gentleman que fora antes. Seu rosto quadrado e muito desfigurado dos séculos de castigos corporais, sol, tempestades de areia e destroços tombou para um lado, decifrando aquele suspiro vindo dela, a pessoa que mais confiava dentro de seu coração.
 - Não seja tímido... Vamos, beba... - ela anunciou indicando o chá servido no pote. Ele titubeou na resposta corporal, poderia estar delirando novamente como muitas vezes delirara em sua prisão. Poderia ser uma armadilha e aquele pote fosse o seu passaporte para o tormento temporário de muitas dores infligidas e que seu corpo cansado jamais se acostumava. - Ou poderia ser só chá de morango, Annami... Vamos... Beba…
 - O nome é Willian... - ele resmungou pegando o pote como conseguia e surpreso ao ver a mágica feérica tomar conta daquele objeto emadeirado se encaixar exatamente nas curvas nodosas de suas mãos atrofiadas. O segurar na mão esquerda estava firme pela primeira vez em 125 anos, um sorriso surgiu debaixo da barba espessa e irregular, lábios ressequidos alcançaram a borda do pote e beberam todo o conteúdo sem derramar uma gota fora, um risinho amigável vindo da ninfa encheu seu coração de novas energias.
 - Você pode mudar de nome, de rosto, até de corpo, mas para mim sempre será Annami... - ela bebericou o seu chá com uma fineza impecável, ele recuperando um pouco das forças, forçou os ombros para trás para ficar ereto na postura, mas os ossos doloridos de estar sempre nessa posição no cativeiro, o fizeram mudar de ideia. Curvado ficou, mas entendeu que deveria se portar como um moço de família, como um cavalheiro, estava na presença de uma melíade, não poderia se envergonhar com suas maneiras primitivas. - Você pensa demais... - ela disse pegando um morango açucarado e retirando um pedacinho da pontinha. Com a destreza de uma elemental da terra (E mais por ser uma criatura travessa), apontou o fruto no nariz do homem turrão a sua frente e o acertou em cheio.



 - Mas que...! - ele resmungou, mais incomodado com a travessura e certificou onde o morango havia parado, bem dentro do chá, boiando levemente como se ali pertencesse. - Ninfas... - ele bafejou iscando o morando de seu chá e o mastigando com todo cuidado que seus dentes quebrados e falhos podiam.
 - Sim, ninfas... - outro suspiro dela, para se transformar em uma exclamação eufórica - Você lembrou que eu existo! Uma maravilha nessa sua cabeça tão ocupada! - disse ela cutucando a testa macilenta do homem. Não se importou se seu dedinho ficou impregnado com o suor, a sujeira e a fuligem da pele dele, voltou ao seu chá alegremente e sorriu gentilmente para o convidado.
 - Eu não esqueci... Só não queria incomodar...
 - Oh claro... Deve ser bem incômodo ter você perto de mim...
 - Os outros diziam que...
 - Os "outros" não sabem de nada. - afirmou veemente a ninfa de cabelos de um loiro tão pálidos ou de castanhos escuros tão sombrios e ondulados. - Tanto que você seguiu o que os "outros" diziam e bem… - ela abanou a mãozinha que não segurava a xícara de chá - Não vamos repetir a nossa última discussão, sim?
  - Eu paguei o preço por querer demais. Acho justo. - ela descansou a xícara no pires e ajudou uma joaninha seguir seu caminho entre as flores, as peças do chá, os biscoitos e outros utensílios. Com uma voz baixa e quase cantarolando, ela predisse:
 - Jamais pense que sofrer por Amor é um preço justo, monsieur... - ele fechou os olhos ao sentir que a dor costumeira na região do pescoço voltara com toda força. Não era o pescoço que doía, era o coração esmigalhado, mas a dor se transferia para outros lugares como se não quisesse acusar de onde vinha.
 - O que posso fazer para agradecer, linda melíade...? Oferecestes comida, abrigo e palavras gentis...
 - Gostaria que você ficasse calado pelo menos por alguns minutos, pode ser? - ela respondeu com um riso tão cristalino e confortante que fez o rapaz se encolher em seu lugar. Fazia muito tempo que não sentia isso, o de querer gargalhar com alguém. - Essa sua cabecinha miúda está gritando coisas que me são pavorosas. Eu aconselho que depois desse chá e lanche, você se encaminhe a cachoeira e se banhe.
 - Nada como um banho para limpar a alma...
 - Oh sim... Você costumava repetir isso quando criança... - a ninfa se levantou de seu lugar e com um sorriso gentil acariciou o ombro direito do prisioneiro foragido, sua mão delicada, morna e macia deslizou pelo seu pescoço marcado com as queimaduras de mil correntes presas ao seu corpo para pousar na concha de sua orelha. Com um leve puxão, ela riu mais alto. - Pela Deusa! Como você mudou! - a reação dele foi de se encolher mais, desajeitado em seu tamanho no banquinho de madeira de uma mesa de chá minúscula.
 - Eu continuo o mesmo... - ele evitou olhar nos olhos tão claros e escuros da musa perfeita, da companheira de brincadeiras infantis e dos sonhos que pareciam eternos em sua mocidade.
 - Não, realmente mudou! Até seus pensamentos ruins estão escapando pelos ouvidos pra dar lugar a outros mais... Hmmmmm... - ela cerrou os olhos de modo pensativo para então sorrir maliciosamente. - Ah, nisso não mudou muito Annami...
 - Não mudei no quê? - perguntou ele se afastando um pouco do carinho incondicional. Não queria pensar muito, pois sabia que estar na presença dela era ter que pensar em certas coisas que um cavalheiro não deveria pensar em horas como aquela.
 - Ora, você sabe... - ela deu uma piscadela e um tapinha nas costas dele, ela apontou para o outro lado de sua casinha emaranhada em uma fundação de rochas, uma árvore de tronco excepcionalmente largo e de muitos galhos retorcidos. Uma confusão de janelas, sacadas enfeitavam a fachada da frente da casa na árvore da melíade Lenore e sempre fora assim desde que William deixara o Eire quando criança e se aventurara nos barcos da Marinha Mercante para ganhar a vida. O que viera depois, apenas lágrimas e chuva, o que viera não era resultado de sua amizade com a ninfa tão distinta, o que viera depois não era culpa de ninguém a não ser sua, mas sempre a mantivera em seus pensamentos e devaneios quando o mundo lá fora o engolia por inteiro. - A cachoeira é naquela direção, você irá saber. Fique à vontade, mas não tão a vontade...
 - Como assim?
 - Da última vez que você passeou por aqui você era uma criança, não lembra?
 - Lembro… - ele mentiu forçando um pouco mais a memória para lembrar dessa lembrança que jamais deveria ter esquecido.
 - E não nesse corpo seu agora. Era puro e imaturo! - o tom de voz da ninfa o fez arquear as sobrancelhas grossas e tentar se levantar do banquinho o mais rápido possível. - Eras puro de intenções e pouco sabias da crueldade dos homens! Tinhas uma imaginação tão grandiosa e sonhos tão gostosos de se aninhar e cuidar! - ela pontuava cada argumento com uma cutucada de dedo em seu ombro esquerdo (Particularmente era o que mais doía) - E olhe só para você!
 - Desculpe-me, mas não pude evitar. O estrago está feito. - ele disse se levantando cambaleante e mirando pela primeira vez em muito tempo a sua aparência maltrapilha e desgastada. A mão que o tocara tão delicadamente minutos atrás puxou o seu nariz ossudo e quadrado até fazê-lo dobrar os joelhos em uma dor característica. - Ai, ai, ai... Quel est ce non-sens, mademoiselle?! - ele esperneou levando as mãos em súplica para as dela aparando o puxão no nariz.
 - Oh, você ainda se lembra! - ela largou o nariz do rapaz e batendo palmas empolgada, deu alguns pulinhos no lugar. Pétalas de flores, insetos menores e muita areia fina seguiu o curso dos pulinhos e se espalhou em uma pequena nuvenzinha em volta dos pés da ninfa - Você ainda lembra!
 - De como você sabe puxar o meu nariz? - a cara de tédio da ninfa o avisou que a resposta era a errada.
 - De como nós trocávamos frases secretas em francês. Isso quer dizer que você não me esqueceu. Isso é muito bom...
 - Como alguém poderia te esquecer...? - ele soprou verificando se seu nariz estava no lugar, o cheiro de morango impregnara em seu olfato e o peso em seus pulmões parecia ter esvanecido.
 - Oh não sei... Talvez alguém que tenha repetido várias vezes que não acreditava em fadas quando mais moço... "Fadas são besteira! Invenção de malucos! Coisa de crianças tolas!" - ela repetiu tentando imitar ele quando era um homem "decente".
 - Erro de cálculo. - ele respondeu automaticamente endireitando a postura com cuidado para não distender nenhum músculo mais que dolorido e percebendo que seu tamanho real chamara atenção da ninfa (que agora o olhava de cima abaixo), em um impulso de defesa ele voltou a ficar curvado. - O que foi agora?
 - Realmente seu corpo não é mais o mesmo e não sei se isso me entristece...
 - Acho que um bom banho resolve... - ela sorriu tristemente para ele e se aproximando devagar o enlaçou em um abraço apertado e envolto de uma aura de proteção. Fazia muito tempo que ele não sentia aquilo percorrer seu corpo, na verdade achava que não sentiria mais nada em sua vida a não ser a dor, mas os bracinhos que se enroscavam em sua cintura o convenceram do contrário. Seu coração, apesar de ter a impressão de estar na garganta, batia alto bem perto do ouvido da ninfa que o embraçara por inteiro.
 - Você irá ficar bem... Isso eu te prometo... - as mãos dela faziam um carinho calmo e protetor em suas costas rasgadas e cheias de cicatrizes. - Annami, ma jolie... Retornastes sem asas a minha casa e aqui ficará até se recuperar... - e afastando um pouco seu rosto redondo e etéreo, fitou profundamente os olhos esverdeados que não brilhavam mais ao mínimo de luz refletida. - Viu como teus pensamentos ruins cessam quando procuras a trilha de volta ao teu coração? - o homem alto tinha o cenho cerrado na direção da ninfa, desajeitado em seu abraço e procurava palavras para se expressar.
 - Ahn... Lenore... - ele murmurou bastante intimidado pelo abraço durar tanto tempo e pela proximidade do corpo pequeno da ninfa junto ao seu.
 - Oui, monsieur? - A rouquidão da voz dele deu uma pista sobre o que exatamente o que ele estava tratando.
 - Eu estou preso há séculos, sem banho, sem ver ninguém e muito menos alguém para me abraçar... desse... jeito... - ela o soltou um pouco, sem largar de seu corpo. - É um bocado complicado fazer meu corpo não reagir com... ahn... com... - ele olhou discretamente para baixo. A ninfa deixou o sorriso triste para trás e o malicioso surgiu rapidamente em seu rosto. Uma sobrancelha dela subiu e com um beliscão no queixo dele, ela se ergueu na pontinha dos pés e o beijou na testa.
 - Podes ter mudado de nome, de corpo, de verdades, mas continuas o mesmo. - a ninfa olhou para os olhos esverdeados cheios de mistérios dele e depois para baixo, ele se encolheu. Soltando-o, ela caminhou de volta para a mesa de chá, sentou-se com um largo sorriso nos lábios finos e vermelhos carmim e apontou novamente para a cachoeira. - Vá, vá se lavar... E volte de alma lavada, s'il vous plaît... - ele abriu a boca para falar alguma coisa em resposta, mas resolveu dar meia volta e ir para onde ela havia apontado. Lenore serviu mais chá para si mesma e ao mordiscar um biscoitinho esmigalhado pelas mãos da criança crescida que ajudara a desabrochar para o mundo feérico, se abanou rapidamente pelo súbito calor que sentira.
 - Lenore, não tenho roupas para me trocar! - ela ouviu lá longe, a rouquidão continuava. Gargalhando ela respondeu:
 - Aprenda como lavá-las! - ouviu o resmungo do marinheiro e continuando a se abanar, terminou seu biscoitinho.