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31 dezembro 2013

[conto] elementos: água e fogo

Maaaais outro na fila (Como é que deixei isso acontecer?!), conto sobre um personagem novo do Projeto Feéricos. Resolvi dar um background mais leve pro coitado, porque ele tava sofrendo demais pro meu gosto masoquista de ser.

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Era começo de verão, lembrava disso, muito calor nos Portos, muito suor, suas roupas grudavam não só de suor, mas de água salgada do Mar, do esforço de descarregar mercadorias, por ajudar os companheiros puxar as macas com os feridos, suor em seu rosto, impregnando seu paladar olfato, ardendo seus olhos, essa sensação não iria sair nunca de sua mente.

Depois haveria o suor da festança, da multidão de diversas cores no Carnaval europeu, das raparigas afoitas pelo seu pouco dinheiro e boa aparência, dos brutamontes em querer se aproveitar de sua força e seu gancho de esquerda, dos pequenos levianos que investigavam delicadamente sua cintura e bolsos a procura de moedas para roubar, nunca achavam e decepcionados e assustados ficavam quando ele percebia no delito. Não os repreendia, apenas sorria. O maluco galês é como o chamavam quando o encontravam andando sozinho no começo da manhã após passar uma noite inteira em algum taverna ao porto, os pequenos (Ele sabia) tinham algo de especial em seus olhares, talvez fossem como ele daqui algum tempo, ou fossem de uma outra geração do olho aberto na testa, mas os pequenos nem desconfiavam do quanto ele sabia que não eram tão pequenos assim.

Os brutamontes beijaram o chão quando o provocavam e o chamavam de demônio irlandês - aí sim acertavam parte de sua origem, pois não tinha nada de demônio em seu corpo e constantemente se purificava nas águas do Mar pedindo aos deuses infinitos que trouxessem paz para sua mente turbulenta e seu corpo ansioso - o pouco de dinheiro que ganhava era fazendo trabalhos sujos nas tavernas ou lutando com aqueles homens de corpanzil enorme, mas pouco entendimento da Realidade maravilhosa que os cercava. Alguns ele conseguiu dar uma pequena amostra, um truque aqui, uma coincidência ali, uma prece atendida, uma doença fatal curada, era assim que demonstrava o seu carinho com os filhos mais novos.

Já as raparigas, bem... Elas o deixavam confuso. Se a ganância por dinheiro era a prioridade, porque em noites de luar quente, escondidas debaixo dos lençóis demonstravam tanto que queriam Amor, carinho, atenção, devoção? O marinheiro - era como elas o chamavam - podia entender a complexidade de uma fórmula química eficaz para disparar um canhão sem desperdiçar tanta pólvora ou misturar o rum com água destilada de forma tão equilibrada que não virava grogue na mão dos outros marujos. Mas o marinheiro não entendia a complexidade das mulheres, seres tão abençoados pela natureza, tão divinos em sua existência, tão agraciados com suas maneiras e poucas sabiam como usar isso ao seu favor (Bem, algumas usavam o corpo e os sortilégios femininos, mas havia tanto mais!). A confusão que elas causavam aumentava quando sentia que a linha tênue entre o entendimento científico e a cegueira da paixão parecia sumir debaixo de seus pés tão ligados a Terra. Era nessa hora que ele decidia pegar outro navio e desaparecer dali o mais rápido possível.

O Mar o acalmava, desde criança nas praias do Oeste do Eire, olhar para o Grande era relaxante, sedativo, quantas vezes não adormecera só ouvindo as ondas do Mar batendo contra as pedras perto da choupana onde morava com a família? Mas sabia que o Mar era traiçoeiro e impiedoso, fora descobrir isso também pequeno quando a fúria da Natureza arrastara a choupana localizada há centenas de metros da praia em terreno firme e varreu todos os vestígios de sua família. Separados pela miséria, pela discórdia e principalmente pela ganância. Foi vendido por poucas moedas para uma família abastada do Norte sem nem verem seus dentes, logo descobriria que o ditado encaixaria muito bem em sua vida.

O suor sempre presente em seu corpo, ou no trabalho árduo nos estábulos cuidando de cavalos, puxando carroças com as mãos, deixando os filhos mais novos o fazerem de montaria. A terra tão presente debaixo de seus pés começou a lhe dar raízes fortes, tomou gosto pela vida rotineira da grande fazenda, apreciava cada refeição rala dada pela criadagem como se fosse a última, corria pelas campinas no meio da noite a procura de lobos e criaturas diferentes (E como as encontrou!), insetos de diversas formas, tamanhos e composições eram seu passatempo favorito para estudar e pesquisar e perguntar aos mais velhos. sabia de cada picada, cada lesão, cada peçonha, cada bater de asas, cada roçar em sua pele de noite enquanto dormia. Os vagalumes o fascinavam inteiramente, vê-los sobrevoar as campinas misturados a névoa fina era como estar conectado a algo superior que ele não compreendia. E a única coisa superior que ele havia visto em toda sua curta vida fora a onda enorme que o Grande Oceano baixou sob a praia onde vivia quando criança.

As chuvas torrenciais que ajudavam a colheita crescer, os pés descalços afundados em um charco lamacento recuperando as batatas que brotavam pra cima do solo, a terra debaixo de seus pés, isso sim o fazia querer ter raízes, ter uma vida ali, seja onde fosse, com o mesmo que tivera antes, com o mesmo que os outros diziam que era digno de se ter, queria ser como os outros rapazes e seus sonhos férteis de vida domiciliar, queria uma família para cuidar, nutrir, sustentar, aprender, ensinar, queria ser comum. Mas ser comum não era para estar em seu livro da vida.



O elemento que predominava em seu corpo sempre era a água, o suor, as chuvas que pegava, as brincadeiras secretas entre ele e a filha mais velha dos seus donos no lago do outro lado da propriedade, a urina dos cavalos, as lágrimas após um dia árduo de trabalho que lhe rendiam hematomas, dores musculares e à vezes um osso quebrado, seus fluidos corporais quando mais jovenzinho e acordava de manhã com uma exaustão absurda entre suas costelas e virilha após ter sonhos nada inocentes com a filha mais velha, a água estava sempre ali, dentro de seu corpo, ocupando boa parte de seus órgãos, e do lado de fora umedecendo toda a Natureza e trazendo o espetáculo da vida. Mas era a terra que o fascinava.

Talvez por vocação ou por conseguir controlar melhor a terra do que a água, ele se manteve com a ideia firme de fazer raízes ali, mesmo que não houvesse muito para alcançar, mesmo se não tivesse uma família que pudesse cuidar, mesmo que a filha mais velha estivesse casada agora com um lorde inglês pedante e mesquinho. A terra o nutria de certa forma e quando nada mais sobrava em seus pensamentos turbulentos, ele voltava sua atenção para ela, colhendo pedrinhas de diferentes formas e texturas, separava grãos de terra fértil das raízes profundas de ervas daninhas.

Era no verão que ele sentia mais pressão vinda da água, como um apelo repetitivo, um clamor incessante que o chamava sem som para se aproximar mais do Mar. Ali onde se encontrava não havia mais a proximidade com o Grande Oceano, apenas esse lago nos limites da propriedades de seus donos e que pelo que o vilarejo lá do outro lado falava: era assombrado por um fantasma. O lago era sua salvação por aquela nostalgia das ondas nas pedras, e poderia ficar ali por horas ou dias, até se lembrar que tinha raízes para cultivar lá onde o alojaram, que o castigo do lorde inglês era severo, que o olhar de desprezo da filha mais velha que ainda o desejava avidamente nas noites quentes do verão era doloroso de se ter guardado na mente. Sentia que ao colocar os pés na água gelada do lago alimentado por uma pequena depressão vinda de um morro todos seus pensamentos caóticos sumiam, como um bálsamo de pura paz. Lembrava que quando seu corpo entrava em contato com o liquido transparente e parecia que o mundo cessava para dar lugar a um cenário de tranquilidade, os pensamentos que sumiam davam lugar para um raciocínio linear e lógico. Como haveria de plantar a próxima colheita de beterrabas, como arrancar melhor as ervas daninhas das abóboras, qual inseto poderia deixar nas plantações para poder combater os outros que prejudicavam, como domar o cavalo arisco, como curar o mau-humor do lorde inglês. O sono que o carregava dentro do Lago não o fazia adormecer totalmente, o fazia ter uma dimensão nova aberta para se explorar. Poderia curar as pessoas como a água o curava de seus pensamentos ininterruptos.

E assim ele foi ser curandeiro sem mesmo saber o que estava fazendo.

O Lago o inspirava, a chuva pesada trazia mensagens, os charcos cobrindo seus pés na plantação de batatas lhe davam segredos misturados com a sabedoria da terra, seu corpo foi ganhando mais robustez pela vida difícil, os cavalos o obedeciam apenas com um olhar ou um gesto sutil de seus dedos, a criadagem que antes o tratava como um mendigo percebia agora na importância de sua sabedoria que vinha por um milagre, um Dom de Deus, uma benção dos santos. Ele apenas agradecia aos elementais que o ajudavam e muitos torciam o nariz por ele trazer a sabedoria dos ancestrais para um ambiente tão civilizado.

Uma mistura de ervas e água fresca do poço todas as manhãs no banho do lorde inglês petulante e severo, o Patrono se tornou uma pessoa amável, receptiva e fértil. Flores de cheiro adocicado, cravos e canela no travesseiro da filha mais velha lhe renderam sono restaurador por meses, a doença nos ossos do mestre da colheita fora curada com muito leite de cabra e uma dieta boa de ovos de galinhas mais velhas e visitas ao Lago. Qualquer um que se sentia enfermo visitava a fazenda e pedia uma benção para o "curandeiro do Eire", o lorde inglês agora revigorado de um estilhaço de chumbo que se alojara em uma de suas pernas apoiava a missão do rapaz de ombros largos, olhos verdes sagazes e mãos velozes. sabia também que sua esposa o desejava, mas sabia que o rapaz o respeitava o bastante para não comprometer sua reputação em ser descoberto pelos outros nas aventuras noturnas no estábulo. Os "milagres" foram se espalhando e logo havia pequenas comitivas vindo de muitos lugares do Eire e do Ulster até a fazenda do Lorde inglês para se consultarem com o rapaz.

Uma dessas comitivas chegara em uma noite de verão particularmente insuportável pelo mormaço e a quantidade de insetos girando pelo ar buscando alimento em qualquer pele que estivesse descoberta, a carroça tão desengonçada chegou na entrada da propriedade e um cocheiro esganiçado e de aparência péssima anunciou sua chegada. aqueles que cuidavam dos portões deram passagem, mas o rapaz curandeiro que tentava tirar um gatinho recém nascido que subira em uma árvore ali perto não entendeu o porquê do murmurinho da criadagem ser tão excitada.

Recebendo uma unhada de presente do gatinho teimoso, ele sorriu para a criaturinha e beijou a casca da árvore que o abrigava, pediu-lhe em silêncio que mantivesse o pequeno a salvo de qualquer animal predador e que ele pudesse saber que estava ali para ajudá-lo. Os murmúrios agora se tornavam risadinhas e gracejos na frente da mansão maior, o mestre da colheita chegou coxeando com sua muleta bem feita de madeira escura e suportes de metal bem batido na ferraria:
 - Voismicê sabe quem chegou?
 - Quem seria?
 - É aquela Condessa lá da capital... Parece que a bichinha está adoentada, querem cura. - o rapaz sorriu para o chão, agradecendo a terra por estar ali naquele momento, talvez a pobre senhora estivesse precisando de sua ajuda e ele daria de bom grado. O chamado da criadagem pelo seu apelido comum "Eireman" foi ouvido, ele sorriu para o velho manco e apontou para cima da árvore.
 - O pequeno subiu não sei como e não quer descer.
 - Ah, isso faço sim, mizifio. - preparando a sua muleta para cutucar o gatinho indefeso agarrado a um galho, o rapaz irlandês abriu os olhos com espanto e o parou.
 - Não, não, ele irá descer! Só espere um pouco sim? - e tirando seu casaco velho, maltrapilho e cheio de remendos feitos por ele mesmo, abriu nos braços do velho senhor. - Use isso para aparar a queda se ele for imprudente na descida...
 - Mas zifio era só cutucá o travesso com isso e deixar cair que nem fruta madura! - o rapaz deu um tapinha confortante no ombro do velho.
 - Não é assim que a Natureza trabalha, monsenhor... - e quando deu as costas para se encaminhar a mansão, o mestre das colheitas soltou um praguejamento ajeitando o casaco como se fosse uma rede em seus braços.
 - Au! - exclamou surpreso e sentindo o cocuruto ser atingido com um baque macio, garrinhas afiadas buscaram se apoiar direito na cabeleira rala do velho senhor. O gatinho havia pulado do galho direto na cabeça do vovô.

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O rapaz não sabia o que fazer, na verdade estava perdido, coração na garganta, joelhos tremendo constantemente, mãos suadas, testa latejante e a pressão abaixo do umbigo era torturante. Nunca vira uma pessoa tão linda em sua vida. Já vira gente bonita, gente graciosa, gente que exalava charme e sedução, mas aquela mulher ali a sua frente, mesmo enferma, parecia que o atingira como uma marretada na cabeça. Errou no cálculo de ouvir as batidas do coração da donzela três vezes, por pouco tirara a conclusão de qual doença a acometia de forma errada, e quando pediu um pouco de água e whisky para a criadagem para reanimar a distinta donzela, ele próprio sorveu um copo inteiro puro para se focar na sua tarefa. Como era possível alguém de um magnetismo tão natural e poderoso estar doente? Como iria diagnosticá-la se não conseguia tirar os olhos de seu belo corpo pousado em uma das camas de hóspede da grande mansão? Como iria disfarçar seu fascínio com tanta gente ali no quarto esperando um veredicto dele?

Sem compreender o que se passava dentro de seu interior, ele resolveu ter as respostas por meio da água, molhou de leve um tecido limpo e aplicou na testa, lábios, pescoço e punhos da dama desfalecida. esperou alguns momentos, a água iria informar o que estava acontecendo e enquanto os outros estavam impacientes, incrédulos, espantados pela pobre condição da Condessa de Dubh Linn. O lorde inglês, seu patrão, o cutucou com uma sobrancelha erguida e um olhar preocupado, a jovem não reagira a força dos elementais, ele deu de ombros para o Mestre da casa e voltou a se concentrar na jovem. Praguejou em silêncio ao ver que seus pensamentos estavam tão turvos com imagens nada apropriadas entre ele e a enferma em situações diversas, tentando afastar aquela distração, ele abaixou a cabeça, colocou as mãos por cima dos olhos e esperou qualquer sinal vir. Qualquer um.

Escondida na manga do vestido ricamente bordado e detalhado, a donzela tinha um sinal de nascença bem perto do pulso, uma olhadela com mais atenção revelava uma figura aproximada a uma chama em suas nuances.
 - Fogo... - ele sussurrou alarmado e em um movimento rápido e fluido, pegou o corpo da Condessa como se já soubesse do peso que ali continha e correu para a saída da mansão exclamando: - Ferraria! Ferraria! Mantenham o forno aceso!! - os que estavam presentes no quarto não compreenderam a mensagem, mas o pirralho que era filho do ferreiro da propriedade entendeu prontamente e foi avisar ao pai. Em pouco minutos de correria acertada, a umidade do ar na região fazendo a jovem dama tossir ruidosamente, sua pele esquentar rapidamente e o suor brotar em sua fronte. Sem se importar com cuidados e refinamento da nobreza, o curandeiro ajoelhou-se perto da fornalha da ferraria, depositou o corpo da donzela ali perto e atiçou o fogo para que ele fulgurasse em rajadas curtas, aquecendo tanto o ambiente da ferraria que a reação foi instantânea.

O ferreiro ajeitava algo melhor para a donzela se deitar, mas o curandeiro o parou no meio do caminho. O garotinho, seu filho, olhava espantado para as chamas produzidas sem tanta lenha assim assim. Algo estava ocorrendo ali que apenas as crianças em tenra idade podem perceber e assustado, maravilhado e alvoraçado, o menininho exclamou: