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22 fevereiro 2014

[conto com angie] tagarelando com moribundos

[cenário: porta dos fundos de algum hospital público instalado ali perto do Posto 2, entre a praça dos bombeiros e a avenida enorme da Metrópole.]

Um senhor varria devagar o pátio cheio de ambulâncias pegando poeira e fuligem, carros de marca importada e cestos de lixo hospitalar, quem ouvia era uma menina vestida como um acidente de carro, toda ao avesso, maquiagem pesada em uma máscara disfarçada para a noite urbana naquele lugar tão disputado pela boêmia. Ela o ouvia atentamente porque sabia que o senhor de estatura baixa - ombros curvados pra dentro, barriga saliente em um corpo magérrimo, de uniforme azul desgastado pelo uso e vassoura de piaçaba nas mãos de dedos longos e fortes - falava a verdade. Pela primeira vez em sua curta vida, alguém que falava a verdade sobre uma Realidade que ela imaginava que todos estavam usando truques para desafiá-la.



"Sou desses desajustados sabe, criança? Que gosta de ladrar até a mandíbula estalar e ver os milicos batendo dente sem entender o porquê. Eles não me machucam mais, eles não encostam mais nimim, todo mundo sabe mexer com gente doida dá nisso: indigestão na oratória. E olha que apanhei muito na minha juventude, coronhada na nuca, cacetada nos vidro dos olho, sacudidão nas goela pra aprender a não ser tão bocudo: peixe morreu de tanto beber água né? Cê sabe né? miúda... Cê sabe... Aí peixe fica maduro pra ser pescado, sabe? Pesca de cuidado, fica no em torno esperando a isca vir, catar a minhoca e sair remando pra longe do anzol, mas peixe bocudo que tenta ficar em silêncio? Esse sempre abocanha mais que a isca, a minhoca, o anzol, tenta pegar a linha toda pra saber quem é que tá na fisgação...

Pois vou lhe falar, fazia muito tempo mesmo que precisava te dar um presente. O presente que fosse, um sorriso sem dentre, uma palavra decente, um abraço comovente, mas nunca se assuntamos antes... Te via nessas vielas aí, andando fagueira como diabo cheio de espoleta nas sola, trotando na escuridão como se soubesse todos os segredos e olha só, eu aqui, no meu canto pensava: "essa miúda é fruto bendito meu... Fui eu que fiz e isso me orgulho, mas como vou assuntar com a miúda? Ela vai ter vergonha d'eu, vai fazer pergunta que não vou saber responder, vai querer me tirar lágrima que não irei mais verter... E dá uma dor sabe? Essa dorzinha no final do dia suado de não ter dirigido palavra... Essa dor que não larga do pé até quando me entupo de cachaça quente, farinha da boa ou bucho vitaminado dos médico (Esses não falha pra me deixar manso, bem manso, mas esquecer de que tenho que te dar um presente? Isso não...).

Cê merece tanto miúda que veio de uma parte d'eu! Cê merece tanto que nem eu sei se tem tanta estrela nesse céu afora pode te premiar com tanta poesia que deveriam escrever pra ti, tanta canção que deveriam te oferecer, tanto chamego, tanto afago e era pra eu fazer isso quando dava. Quando eu pudia ser mais do que sou agora, agora não dá mais não... Esse bode aqui tá mais passado que arroz de terceira em final de feira, hehehehehe...

Cê olha procê vê, miúda, inimigo é Tempo sem perdão, esperei sentado o de tua linda, e ela não deu, me deu essa graça aqui na minha frente, mas perdão, esse não deu, não. Não me arrecuperei disso não, nem acho que vou, já me encheram de tanto bucho vitaminado da medicina moderna, de tanta palavra de doutô estudado, verificado, fabricado, certificado, amado, mas não deram solução pros meus parafusos soltos, não. O que dói? Dói tudo. É compricado, não sei donde começar, é compricado. Cê sabe né? Cê sabe sim... Tô avistando nesse teu olho esbugalhado bonito de se ver: cê já perambulou nessa sopa de bucho vitaminado? Não? Mai então o que foi? Cê já amou? Oh miúda, cê já amou né? E dói né? Cê sabe, né? É cê sabe...

Donde ela tá agora? Lá vou saber? Não vi ela desde que cê era pequetitinha ainda dentro dela, tão graciosa aquela mulher ficou... (pausa para um suspiro longo e a retirada de um lenço de papel amassado do bolso da camisa do uniforme azul)

Não sou doido varrido, miúda, só acho que vejo coisa demais, coisa onde não deve estar, coisa onde não deveria estar e quando vejo, esperneio. Alguém tem que lembrar esse povo que aquilo que nóis não vê se embrica nesse mundo que nem café com leite e arroz com feijão. Eles tão aí, vendo nóis vendo eles, mas ninguém avisa os coitados que eles precisam ver que a gente vê eles, é mó danação.

É triste demais, miúda, ficar uma vida toda tentando explicar pros outros que eles não tão sozinho, que tamos aqui vendo eles e eles podem olhar pra gente também... Muito triste... Mas eu, miúda, tenho uma missão desde que nasci lá no nordeste calorento dessa selva do mundo: tenho que dizer a eles que também tou aqui vendo eles... Pra não esquecerem o que a gente veio fazer aqui e o que eles vieram fazer aqui.

Quê eles vinheram? Eu sei lá... Isso eles sabem de cor, mas esquecem, sabe? Esquecem do que vivem, do que realmente importa, do que é melhor pros outros, pra eles, pra nóis que vê eles e os outros... É triste assim... Cê entende, miúda? Entende que isso me machuca? Não te vi crescer, não te vi espichaar a crista, não te vi emprumando os peito pra brigar no mundo, não vi minha miúda sair das minha asa pra lutar aí fora nesse mundão feio aí fora. É triste ver isso... Cê cresceu e eu tava longe, tava aqui, da janela, te vendo roendo essas ruas aí afora, catando sonho perdido dos outro, fazendo eles acontecê, mesmo quando os outros não acreditava (E ninguém acredita), eu te vi crescer, mas não te vi sorrir e isso machuca demais, sabe? É triste dimais sô...

Sei que tá tarde pra pedir qualquer bobagem, pra tentar colocar paninho morninho na ferida que não vai sarar, mas quando cê precisar tagarelar com um bode velho, eu tou cá... Pó vir que aguento o rojão que for (Já vi cada coisa nessa vida que cê nem ia acreditar), pó vir e nóis tagarela com os moribundo lá da UTI e vê o que eles tanto sonha. Feliz são eles que não precisa viver nesse mundo... Disgramento é esse o dia que a gente decide cair pra levantar na cova de concreto e aturar isso pro resto dos dias. Cê entende isso, miúda minha? Entende cuma que se assunta? Posso te dar o presente então? Cê deixa eu tentar versar? Não ri não, miúda, esse bode velho sabe versar...

No meu tempo de moço, que osso
Segurar o Amor num estandarte, que Arte
Coração rebuscado na loucura, tontura
Pino solto foi-me herdado, retardo


S'eu tentasse uma fagulha, amargura

S'eu jogasse todo charme, vexame
S'eu morasse mais um pouco perto, esperto
Esperto seria eu de te ver todo dia antes do amanhecer.

Eu, sei, eu sei, miúda. Não rimou, mas pra quê rimar poesia? ouve esse bode velho batuta aqui...
Onde eu tava mesmo? Cê me fez perder a meada do fio, mizifia anjinha... (colocando a vassoura de lado como se fosse um apoio para o corpo pequeno e magro de idade e pigarreando para soltar a voz)

Como qualquer um!
Como qualquer um que tem crise de bistinênça,
Como qualquer outro que declarou seu coração à falência,
Qualquer um outro aí, aiaiai...
Como qualquer outro perdido que pede conselho.
Como qualquer um que recebe um breve apego ainda cordado na escuridão.

Passa dia acordado,
as manhã são fantasma,
as tarde traz pesadelo.
Ao avesso. Virou do avesso.
Noite pelo dia, dia pela noite.
O que era primo, virou pai.
O que era irmão virou inimigo.

Lógiquinha imperfeita de uma sociedade alternativa.

Da minha cama, colchão tá comido.
Dividir ao meio seria uma razão.
Então divido tudo ao meio, eu reparto os pão.
Eu vejo a alegria em massa,
mai óia só, não vejo a minha satisfação

Rimou, mas satisfação seria uma palavra medíocre.
Medíocre, medíocre, medíocre. Razão.
Uma pra seguir, outra pra viver.
Me desprendo das duas e vejo se meu barco vai correr.

Como qualquer um que tem crise de identidade.
Como qualquer um que não suporta mais ser da mesma idade.
Como qualquer um outro aí que não aguenta mais ser o mesmo.
Ser-o-mesmo-humanitário (Releve, releve).
Como qualquer outro aí. Não eu.
E a memória é fraca, a carne é fraca, os pensamentos se tornam também.
Reféns de uma insônia progressista-democrática-burocrática-fascista.
Como qualquer um com os probrema passageiro.

Conta, conta nos dedos como dói. Os meus foram decepados no momento em que te deixei. Me diz como se pára de pensar? Tem engrenagem padrão? Tem fio de interrupção? Tem distraimento maior que a própria exclusão? Me diz...? Num diz...? Tudo bem, guento. Como qualquer um outro aí...


Gostou dessa, anjinha? Tem muita palavra bonita nessa, peguei no dicionário, já proseei com jurista, bem bonito isso, bem bonito... Quê cê tá chorando miúdinha? Fica assim não! Oh Deus Cristinho, tu chora e eu mingo de aflição, criança! Chora não! Se eu verso desde quando? Desde sempre, miúda, desde sempre. gente doida é assim mesmo, cantarola pra se liberar dos micróbios.

 - Obrigada... Por tudo... - a jovenzinha apertou o velho senhor no abraço desajeitado no corpo pequeno do zelador do hospital. Ele retribuiu com carinho nos cabelos longos e escuros dela.
 - Cê para de chorar miúda... Isso corta o coração aqui...
 - Cê não entende, seu Nascimento...
 - Oxê, entendo um poco de tudo, miúda... Tá miorzinha agora? Chora não, que dói tudo, hehehe...
 - Só um trenzinho...
 - Pó falar pra esse bode aqui.
 - E meu presente? - o senhor mirrado sorri de dentes falhos e retira um plástico dobrado com uma folha amarelada do bolso interno do uniforme. Entrega a folha coberta pelo plástico e espera a menina abrir e verificar o conteúdo do quase pergaminho lacrado, uma memória de uma vida inteira sem sobrenome.
 - Cê trata de não rir não. Nome foi em pra agraciar tua avó, coitadinha... Ficou lá na minha terra esquecida, tricotando tapete e cantando na beirada do Rio com as roupa pra lavar. Lavadeira ela, formosa, boa de papo, levava jagunço, doutô, coronel e tenente na água morninha quando falava, todo mundo gostava de ver a véia cantar. Deus tenha mamãe... - Angela mirou várias vezes aquele pedaço de papel que parecia mudar toda a sua perspectiva de vida desde que se conhecia como gente, o nome ali correspondente nas linhas datilografadas em um papel amarelado pelo tempo a assombravam um pouco.

Já ouvira esse nome antes circulando por lugares onde não deveriam estar. Estremeceu.
 - Cê sabe dos trem lá do metrô? - o velho balançou a cabeça confirmando.
 - Não chego perto da minhoca de ferro não... Faz mal pra minha saúde. Num entendo aquele troço não. - a garota continuava a tatear a folha velha de uma certidão de nascimento antiga e passou o dedo na data ali exposta. Estava 23 anos atrasada. - Escuta miúda, cê vem visitar ieu amanhã?
 - Com certeza! - ela respondeu animada e com um sorriso difícil de decifrar, sua mente estava um bocado perturbada com tantas perguntas a fazer.
 - Traz coisa pra nóis bebê, trago pão e ovo lá de casa, nóis faiz lanche aqui sem ninguém saber...
 - O senhor não quer ir lá onde moro não? É mais confortável que aqui fora...
 - Cê quer isso, miúda? Não faiz nada que te deixe acanhada só por obrigação, viu? - ela sorriu novamente, mas deste vez de forma benevolente e confortável.
 - Vai ser uma alegria ter o senhor lá em casa... A Raine vai adorar te conhecer...
 - Mai quem é essa moça? Tua mãe apegada, é?
 - Quase isso. Te vejo aqui na mesma hora?
 - Só apertar na recepção, miúda anjinha...
 - Obrigada... - ela disse o apertando em mais um abraço desengonçado e o soltando com lágrimas escorrendo novamente.
 - Oh criatura difícil, sô... Para com a choradeira, miúda... Dói dimais aqui, sô... - disse o velho apontando o meio do estômago como se segurasse algo muito importante ali.
 - Padim, coração fica mais em cima. - o velho zelador ajeitou o bonézinho estropiado no cocuruto grisalho e ralo.
 - O dos outro fica, o nosso é bem aqui mesmo. - apontando pra barriga da jovenzinha. Ela gargalhou contente com essa peça de sabedoria. Tudo havia uma razão. Tudo.
 - Padim, bença e bá noite... - ela disse beijando as mãos dele e recebendo um na testa.
 - Danuu te abençoe, miúda anjinha... Danuu te proteja...

Na folha de papel encardido e amarelado pelo tempo estava prescrito sua criação. Nascera na metade da Primavera com o nome de Maria Ev'Ângela das Dores do Nascimento e tinha mais de 40 anos na contagem dos Filhos mais Novos.


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N/A: a contagem de tempo dos Feéricos segue mais lenta que a dos humanos. Clássico. E como a Angie passou muito tempo na Terra dos Sonhos de Ninguém contou mais alguns anos desaparecidos aí.

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