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20 maio 2014

[Projeto Feérico] conto com angie - dia de hoje

FAIRY MOTHER & CHILD
By David Delamare

Maria Ev'Ângela das Dores do Nascimento não gostava de feriados.
Afetava muito as pessoas a volta e quando você era uma feérica de muitas primaveras, pior ainda.

A Roda parecia girar incessantemente, desvairada, sem dar dica se iria parar em algum lugar ou simplesmente voltar para um ritmo normal e as pessoas ficavam um bocado estranhas. Ela mesma ficava estranha ao ver que as pessoas ficavam estranhas. Okay, estava um bocado confusa agora com toda essa estranheza no ar.

Os feriados eram como roletas russas para os feéricos: poderiam ser uma total alegria e felicidade, mas ao mesmo tempo deixar muitos em um poço de depressão e pensamentos ruins. Como poderia alegrar um Troll do Gelo quando todos comemoravam o começo do Verão? E que raios teria de bom comemorar o Dia das Crianças se o feérico já era milenar, velhaco, acabado e provavelmente usando fraldas? Dias específicos que os Filhos-mais-Novos decidiram incluir por conta de diversas razões (comércio, simbologia, religião, etc) eram os que mais traziam problemas e benefícios para os feéricos.

E os problemas eram o que ela deveria lidar mais.


Não a entenda errado, Angie era feliz como era. Mas às vezes ser ela a fazia ter muita vontade de ser alguém menos ou sei lá... Ser ninguém, como era antes. Entender o princípio universal do funcionamento da Vida era ruim quando se havia feriados mais exaltados. As estatísticas diziam: pessoas costumavam morrer mais em dias de feriados e isso deixava a menina querendo pular nas costas de todo humano que via para não deixá-lo fazer ou ser vítima de alguma besteira reservada do Destino.

Mas ela não podia e por isso ela se chateava nos feriados.

Um feriado em particular que ela não entendia o porquê dos Filhos-mais-Novos inventarem era os dias de parentes, dia dos pais, dia dos irmãos, dia dos avós, dia das Mães. Era tudo tão injusto! Para quê um feriado para comemorar algo que deveria ser celebrado todos os dias? Ela como uma menina órfã desde muito cedo sabia bem o peso da data em suas costas, não a celebrava por motivos que nem ela sabia o porquê e quando se juntava a alguém para comemorar, acabava emburrada por saber que toda a simbologia do feriado não a atingiria.

Okay, tudo bem, Angie sentia inveja dos Filhos-mais-Novos agraciados com a companhia materna. Sempre fora assim e sempre seria.

Aquele dia - o dia de hoje - era um dia desses, em que todos pegavam o domingo sagrado e iam na casa de suas matronas comemorar "seu dia" como gostavam de colocar nas propagandas. Ângela por sua vez preferia se enterrar dentro de um cinema velho e ficar comendo pipoca morna, vendo filmes de terror clássicos dos anos 60 e pensar que o mundo lá fora era muito idiota para compreender o que era viver sem mãe e pai desde pequena.

Pagou seu ingresso com moedinhas contadas, ajeitou o balde de pipoca perto do peito, pegou o litrão de refrigerante com dose de açúcar exagerada e entrou no pequeno teatro que se mantinha como cinema e casa de shows na grande Metrópole. Iria se desconectar do mundo lá fora, iria se imergir no que a fantasia dos humanos poderia criar com tão pouca sofisticação, iria se esquecer que era uma menininha solitária e órfã e que apesar de tudo que já havia passado em sua vida longa, queria muito ter um apoio materno por perto para fazê-la se sentir melhor com sua condição.

O filme escolhido era um filme muito ruim sobre tomates monstros e assassinos, como Angie adorava a fruta em seu sanduíche extra-grande no Trailer do Dogão, de certa forma se sentiu atraída pelo título. Sentou-se no meio do teatro, sala parcialmente vazia, com alguns espectadores espalhados pelos cantos, pessoas que também caíam no radar da Sina que Angie não conseguia desligar quando queria relaxar e aproveitar o mundo dos humanos. Sentou-se e ali ficou, mão indo e voltando no balde de pipoca, acompanhando o filme com uma atenção desviada por pensamentos sobre o feriado.

Por que não poderia ter a companhia de uma mãe?
Fizera alguma coisa tão errada assim na vida anterior?

Será que vir para esse mundo agora nessa época era para ela aprender que ter uma família independia de ter laços de sangue com alguém? Mas todos que ela considerava como família não eram mães. Não, não, não, nenhum deles chegava perto do sentimento entre mãe e filha que ela queria tanto voltar a sentir.

Com Raine era um coleguismo quase simbiótico, a futura (não tão futura, mas adiando para sempre) Rainha de Hibérnia era como uma irmã mais velha, a orientando e a colocando na linha quando ela se desviava demais. Faziam bagunça juntas, arrumavam as bagunças juntas, trocavam dicas de moda aventureira, dividiam os mesmos gostos musicais, gostavam de biscoitos, vinho tinto e gatos, mas Raine não era maternal, bem longe disso.

Mama Zenzi era como uma avó, mas não se aproximava da figura materna. Por ser a lendária eshu da Tribo dos Nômades do Caminho Prateado, Mama Zenzi não chegava nem perto da figura matronal que todos achavam que ela era. A senhorinha milenar era uma cigana de corpo e coração, suas regras eram diferentes daquelas que Angie conhecia das mães humanas e definitivamente levava mais puxões de orelha e sermões da velhinha do que realmente aquele amor de mãe.

A palavra "Amor" fez Angie encolher no banco comido do cineminha barato, a lembrando que estava esmagando o balde de pipoca. Relaxou por um momento, pegou seu litrão de refri e sorveu calmamente para amenizar a dorzinha chata que atingira a boca do estômago ao pensar em "Amor". Era estranho admitir que uma reação involuntária de seu corpo a fazia lembrar do porquê estava ali naquele lugar, naquela época, sobrevivendo àquela provação. Foi o Amor que a trouxe para esse mundo e pelo Amor deveria permanecer, mesmo que isso causasse náuseas e contrações nas entranhas.

De Mama Zenzi passou pela lembrança da senhorinha enfermeira do Posto 2, dona Alcidez, que morava na caçamba enferrujada perto do depósito dos garis e cuidava de todas as meninas do aterro sanitário em que nasceu e foi criada. Aprendeu muita coisa com a velha, como catar lixo bom de lixo ruim, como ficar longe do montinho do ferro-velho (Por razões óbvias: todo feérico era alérgico a ferro de qualquer tipo, enferrujado pior ainda) e do montinho hospitalar, como deveria escolher as frutas nos montinhos de orgânicos, como deveria negociar os recicláveis com o povo das associações. A senhorinha também havia lhe dado o melhor amigo possível para uma menina como ela: Toby viera pequeno pro Posto 2 e cuidava da dona Alcidez e assim que ela morreu, Angie tratou de cuidar do filhote de garou até que ele soubesse se transformar direito com as instruções de Emilio.

Suspirou novamente. Dona Alcidez era muito boa para ela, muito boa mesmo. Não merecia ter morrido em um hospital frio e cheio de Banalidade, de pneumonia, com filhos estúpidos disputando a casa onde morava. Ela merecia melhor, merecia ter vivido mais um pouquinho e dignamente como queria, mas com a Morte não se negociava, até porque... bem... A jovem feérica comendo pipoca em uma sessão de cinema de classe D era parte Dela.

Lembrou então do dia em que conheceu a estrangeira, que o nome sempre escapava da língua ao tentar lembrar, uma moça qualquer, bem bonita, de longos cabelos escuros e rosto quadrado, olhos que mudavam de cor quando o Sol ou a lua pegava direitinho no reflexo, de vestido floral rosa bebê e chapéu de feltro claro que por acaso entrara em sua vida quando era bem pequena. A moça não falava seu idioma, mas se esforçava em entender suas poucas palavras quando permaneceu por um tempo ali visitando o Posto 2 e ajudando a associação de catadores de lixo.

Angie não largava dela. Ficava literalmente grudada em seu vestido, observando cada movimento, cada gesto, cada reação, cada sorriso ou linha de preocupação, mas não lembrava de seu nome, nem quando forçava a memória de como a moça a deixara. Bem, não foi a moça que a deixou, Angie sabia que havia deixado a moça, isso sim era a certeza absoluta, pois os nômades costumavam não criar raízes até quando o Amor aparecia em suas trilhas. Suspirou de novo, sorveu mais do refri, quase engasgou ao ver uma cena absurda acontecendo na tela. Aquele filme estava ficando interessante.

Desviou seus pensamentos novamente para prestar atenção no enredo esdrúxulo e nem percebeu que alguém sentava de seu lado.
 - Já chegou na parte dos soldados com lança-chamas...? - perguntou a pessoa do lado, ajeitando uma bolsa no banco vazio do lado e tirando alguns doces.
 - Na-não... Tão ainda fazendo aquele trem lá no shopping center...
 - Aceita jujuba? - ofereceu a moça desconhecida de seu lado. Angie ligou o automático e estendeu a mão para aceitar as jujubas, mas antes de jogá-las na boca parou para observar a companheira de filme: era a lupina do meio da Tribo Klovia. E ela estava...
 - Você parece que nem gente normal... - comentou a menina fazendo uma careta desaprovando as roupas da lupina tão aterrorizante. Toda vez que Angie encontrava as 3 irmãs, sempre era sinal de mau agouro ou catástrofe na certa, mas ver a do meio ali, sozinha em um cinema barato, isso era muito incomum.
 - Não sou gente normal, só tento disfarçar a minha diveza para o mundo... - disse a lupina mexendo nos cabelos como se gabasse daquele atributo. Angie levantou uma sobrancelha e comeu as jujubas com cuidado, não saberia qual seriam as intenções da metaforma ali.
 - Cê veio nomnom alguém?
 - Não, só ver o filme ruim mesmo... Oh, não falei! Lança-chamas! Yaaaaaaay! - comemorou a mulher nem tão jovem nem tão velha, levantando os braços e sorrindo com os caninos a mostra. Angie encolheu-se em seu lugar e voltou a comer pipoca com muita vontade. Olhou ao redor para os espectadores pingados, alguns estavam perto da saída lá no fundo, um mais corajoso estava ali quase de encontro com a tela torta do cinema.
 - Cê veio me cobrar alguma coisa?
 - Não...
 - Então não vai me nomnomnom?
 - Não...
 - Então por que está aqui...? - a Fúria Negra virou para Angie com seriedade, olhos castanhos claros e as sobrancelhas arqueadas. A raiz dos cabelos era loira, Angie percebeu. A Fúria era loira?!
 - Vim assistir o filme ruim porque gosto da parte do lança-chamas, menininha curiosa e perguntadeira. - e voltou a ver o filme. Angie olhou de novo pra saída do teatro. Ninguém na platéia, estava sozinha e encurralada em um teatro velho, mofado, vendo filme de terror com uma Fúria Negra (E se sabia bem das histórias: a Fúria mais sanguinolenta de todos os tempos junto de suas irmãs). - Quer mais doce?
 - Não, tou bem aqui... - a risadinha da mulher mais velha fez Angie sentir a pipoca e o refri remexerem em seu estômago de ferro.
 - A Filha dos Ventos recusando comida... Essa é boa... - e remexendo em sua bolsa no banco vazio, ela tirou uma barra de chocolate e um potinho cheio de confeitos coloridos, passou para Angie segurar enquanto tirava mais coisas: livros, um espelho redondo, celular, fones de ouvido e carteira. Deixou tudo no colo de Angie até conseguir pegar o que queria.
 - Cê lê Senhor dos Anéis...? - a menina viu a capa do livro pesado e tentou se mexer na cadeira, não lia muito porque não sabia ainda juntar as palavras direito.
 - Arram, meu favorito... Oh não, é O Hobbit. É um bom livro, já leu?
 - Sim, sim... - Angie mentiu para não prolongar aquele assunto que a deixava mais acuada que ficar na companhia de uma das bestas mais cruéis do mundo sobrenatural. A Fúria virou para ela e com um sorriso de caninos aparecendo entre os lábios, soprou um canudinho colorido e deixou bolinhas de sabão voarem para cima delas. - HAHAHAHAHAHAHAHA!!! - a feérica caiu na risada na mesma hora, quase derrubando tudo no chão. Foi aparada pelas mãos da lupina, que foi colocando tudo de volta em sua bolsa, menos o livro pesado.
 - Me avisaram que para ter encontros com feéricos é sempre bom levar tubos de bolinha de sabão e... - fuçando novamente na bolsa, tirou um óculos de lentes azuladas e o colocou com estilo. - E precisa de proteção aos efeitos que vocês nos causam.
 - HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA!!! - a jovem Eshu não parava de gargalhar alto pelo inusitado modo da lupina se proteger. Não havia muita lógica no que ela falara, mas Angie se sentia mais confortável com a presença dela, segura talvez... Confortável e amigável, sim.
 - Hey, schiu! Está atrapalhando as pessoas a ver o filme! - ela a admoestou murmurando e colocando o potinho colorido de enfeites no colo de Angie e tirando a pipoca dela. - Não coma tanta porcaria dos humanos, isso mata a sua essência natural... - Angie nem tinha prestado atenção no que a mulher falara porque estava admirada com os confeitos cristalizados com açúcar.
 - É de quê?
 - Várias coisas... Sementinha de abóbora, feijões mexicanos saltitantes, cicuta... - a feérica a olhou apavorada. - Tou brincando, criança... É na maioria semente de abóbora, faço com bastante açúcar e um pouquinho de manteiga, é gostosinho na verdade... - pegando algumas e colocando na boca. Angie observou a mulher mastigando o snack barulhento - E faz barulho quando a gente come... - disse com a boca parcialmente cheia. A menina olhou para os confeitos e experimentou um... E dois... e uma mão cheia, até estar absorvida com a sensação de pequenas explosões dentro de sua caixa craniana que a deixavam muito feliz, muito muito feliz.
 - Cumé que se faz isso? Quero fazer também! - perguntou ela com entusiasmo, estava sentindo algo estranho expandir em seu peito, como um quentinho bom depois de tomar chocolate quente ou rir a beça das piadas de Toby.
 - Bem... Você pega a abóbora, tira as sementes, lava bem né? - foi explicando a mortífera lupina, Angie não prestou atenção no que ela falava porque percebera que ela usava maquiagem, muita, bem ali perto do olho esquerdo até a bochecha. Cobria alguma coisa, uma cicatriz talvez? - E você nem está prestando atenção no que falo... - completou a mulher assoprando as bolinhas de sabão novamente, Angie gargalhou tanto que logo estava limpando lágrimas do canto dos olhos. - Escuta... Não te ensinaram a ler nas tuas andanças não?
 - Ahn, quê?! - a menina quase cuspiu o que tinha na boca por ser descoberta.
 - Não tenho telepatia avançada, menina, mas sei quando alguém finge que sabe de alguma coisa para não parecer constrangedor... - e indicando sua volta - Você acha que eles fogem da gente por quê?
 - Porqueeeeee... vocês são... vocês comem gente. - respondeu Angie afinal, sentindo que uma casca de semente havia ficado grudada em seu dente.
 - Sou vegetariana.
 - QUÊ?!

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