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21 novembro 2015

[contos] Feéricos - fios emaranhados

[FYI: estava um pouco alta ontem com cerveja de abóbora no sistema circulatório. Saiu isso. Agora relendo, vejo que há um futuro para o rascunho, mas vou arrumar as arestas fora de esquadro aqui, eita... Ps: a cerveja é até gostosa, tinha gosto de canela + cravo + abóbora + pimenta]

Arte: Parisian Cafe/Le Petite Rolleback por S. Sam Park

Título: Fios Emaranhados (por BRMorgado)
Cenário: Projeto Feéricos.
Classificação: 14 anos.
Tamanho: 4230 palavras.
Status: Completa.
Resumo: Angie recebe um convite para um encontro com velhos amigos. O que ela não esperava eram as novidades serem além do que planejava originalmente.
Disclaimer: Esse conto faz parte de algum rascunho perdido meu do Projeto Feéricos que vocês podem ver os pedaços sendo costurados aqui nesse post [x]



Encontros formais me deixam com vontade de dormir. Escutar a Realeza sempre me deu sono. Os ricões não sabem contar boas histórias, aquelas que deixam a gente sem pregar os olhos por dias imaginando os desdobramentos dos acontecimentos. A magia do contar histórias tá meio mortinha entre eles. O contar dinheiro e posses, beleza, fábulas para a quiançada? Nope.

Bem, são poucos que me fazem sair da Metrópole às 7 da madrugada para aparecer em alguma viela sei lá aonde nesses trods da vida bem na frente de um café com arzinho parisiense. Tou sabendo da agitação esses dias aqui nas quebradas, não gosto de me meter com política feérica, muito menos dar pilha para hobgoblins só esperando uma oportunidade para mastigar os crânios da gente. Sinceramente, entre a brutalidade dos hobgoblins e acordar antes das 7 da manhã, fico com a primeira opção.

(Deuses sabem o quanto é um pecado fazer uma nômade como eu sair do quentinho de debaixo das cobertas em um dia particularmente frio e chuvoso na Metrópole, após dias de intensa investigação furada com os Caçadores de Quimeras. Heresia, eu diria. Mas quem sou eu para professar alguma coisa? Sou só a garotinha do Caminho Prateado, ninguém tem que prestar atenção em mim não.)

Aqui estou eu, me arrastando sem meus saltos 15, mas de chinelos. Não custa nada ser um pouquinho de casa aqui nesse canto do mundo, até porque essa cidade é o ícone do relaxamento fofo do romantismo barato. Eu que não acredito mais nesse tipo de coisa faz tempo, vou preparando as caraminholas da cachola para ouvir o que eles têm a dizer.

Seja lá o que for, deve ser muito urgente.



Faz tempos que ninguém tem notícias da Casa de Nuala, e faz muito tempo que não vejo a cara do filho prodígio. C'est la vie, é como eles dizem. Pensando bem, fico até com vergonha de dizer que a vida continua, porque esse é um ponto de vista unicamente deles e não meu. Não é que continua, ela cumpre o que tem que cumprir. Se o mané do Arges me fosse confiável, dava essa dica pra ele, mas cês entendem como é que é, né? O cara achou o seu coração, agora não vai largar da barganha de jeito algum. O Tempo está a favor dele. O meu Tempo já foi, só tou cumprindo as horas extras.

Espreguiço-me com dificuldade, não devia ter escolhido essa blusinha, apesar de ser primavera aqui e as flores enfeitarem cada canto em que olho na viela francesa de sei lá aonde, tá batendo uma friagem chata por aqui. Ajeito-me como posso, puxo a bendita vestimenta pra cobrir minha barriga. Eeeeeeee lembro que não tomei café da manhã, okay... Ótimo, vou precisar de café. Muito. E rosquinhas. Franceses fazem rosquinhas? Será que croissants são bons também? Será que tem doce? Rosquinha com geléia seria legal e café. Expresso, sem açúcar, lotado de creme. Urrum, é isso que vou pedir...

Só que não tenho um puto no bolso.
Minha calça nem bolso tem!!
Peraê?! Eu tou de calça de pijamas?! Mas o quê raios...?

 - Oh mademoiselle Ângela! - só vejo um vulto tomando forma a minha frente. Ele tá ficando mais forte conforme o tempo passa. Bacana. Ter o poder de volta pode trazer benefícios ao corpo. Li isso em uma revista aí, tipo aquelas de dieta, algo assim. Apesar que a ideia de dieta me dá vontade de socar quem escreve sobre isso. Quando você passa fome, atolada de lixo até o pescoço em um aterro sanitário a sua infância toda essa premissa parece uma piada de mau gosto.
E olha que eu aprecio piadinhas de mau gosto.

 - E aê bruxão? Tudo em riba?
 - Como sempre, se comunicando em uma linguagem que não consigo decifrar...
 - Cê não é o fodão das mensagens subliminares do Submundo? Tá reclamando do quê?
 - Venha, vamos tomar um café. - ele indica uma mesinha ali perto. Tem pouca gente na viela, aqueles foliões da quarta-feira de cinzas que tão recuperando as forças para encarar a vida voltar ao normal. Porque a vida continua... Arrãm, sei...
 - Véi, cê leu minha mente... - ele está da mesma forma que o deixei. Alto, austero, cabelos um pouco mais curtos, escuros como suas roupas finamente cobrindo um corpo que já recebeu todos os tipos de castigos possíveis e imagináveis pela Humanidade. Esse cara é um sobrevivente, tenho que tirar meu chapéu para ele, ou sei lá, respeitá-lo. Mas não sei se respeito é a melhor forma de demonstrar um certo carinho por aquele que salvou metade do meu Tempo nessa missão inacabável. Sarcasmo parece ser melhor para elogiá-lo. Yep, bora usar a dona para desviar qualquer desconforto que sinto perto dele. Esse cara me dá arrepios.
 - Fique à vontade, escolha o que quiser, é por minha conta.
 - Cê sabe que posso muito bem levar o estabelecimento à falência, né? - ele dá de ombros como se já soubesse.
 - Será uma conversa breve, creio que seu apetite não irá me dar muitas despesas.
 - Você subestima o vórtice dentro do meu aparelho digestivo.
 - Digestório.
 - Oi?
 - Eles mudaram a nomenclatura, é digestório...
 - Cê voltou pra profissão, é? Não cansa de repetir o script, não? - outra vez o dar de ombros como se não se importasse.
 - É um dom e devo fazer o meu melhor para ajudar as pessoas. - o atendente do café chega, fazemos nossos pedidos. Ninguém entende quando peço leite frio no café. Repito meu pedido em um francês fuleiro, faz tempo que não uso essa lingua e ninguém nunca pediu para isso. Espero que ele entenda que os croissants são doces. E rosquinha, se tiver rosquinha. E geléia de uva. E baguetes, preciso de baguetes e tortinhas de limão. Será que tem aquela sobremesa estranha que tem que quebrar com uma colher? Tipo creme-alguma-coisa? Será que se eu perguntar vai soar estranho? Por que eu tou tão nerv...?
 - Papa! - a exclamação vem estridente em forma de uma criança de 3 anos no máximo, desajeitada em seu andar, macacãozinho vermelho e blusa florida. Cachinhos ruivos bagunçados pelo andar balançado. Yep, o sujeito fez cria. Isso me pega de surpresa! Não quero nem ver como o povo de Concórdia vai achar disso.
 - Véi, o filhote é teu?! - é a única coisa que sai na hora. A mãe cruza os braços, ofendida por eu tratar aquele pequeno pedaço de meio-humano-meio-feérico como uma coisa. 
 - Não lembrava da sua falta de tato, Angie... - disse a persona real. Tipo, real de Realeza mesmo, os anos passaram, mas finalmente a herdeira do trono aprendeu a botar a coroa na cabecinha de melão. Ótimo. Se a briga chegar nesse quintal, o problema não vai ser mais da Chefia. Ainda bem... Até porque a Chefia está... 
 - Henry, você quer comer alguma coisa? - pergunta o pai zeloso, a mãe se coloca atrás do homem, mãos em seus ombros e um olhar de espantar um batalhão de goblins. Eu me sinto mais do que desconfortável, sinto aquela ansiedade maluca de dançar como louca nas pistas de rave trash no Largo da Carioca.
 - Não me leve a mal, mas da onde eu venho, ter filhos com esse tipo de cara é quebrar todas as regras possíveis no livro de tradições.
 - Há coisas mais importantes que tradições, em minha opinião... - disse o expert em evaporar acordos antigos como ninguém. A criança pula no colo do pai e se aconchega nos braços dele. É até bonitinho, se não me sinalizasse uma bandeira vermelha enorme vinda do fio prateado amarrado na auréola coloridinha no alto da cabeça do guri. 
 - Então, o que posso fazer por vocês? - resolvo ir logo ao ponto. Prefiro comer e ouvir do que falar e ficar com fome.
 - Na verdade, é o que podemos fazer por você... - okay, segunda surpresa do dia. A terceira, o atendente chega e ele tem rosquinhas com geléia de uva! Oh maravilha! Ataco tudo que tenho direito e espero uma explicação do pai zeloso. O guri emana a força dos Antigos e a magia dos feéricos. Gente, Fionntáin vai pular nas tamancas... Nem vou falar pra Raine, vai dar um probreeeeeema... - Soubemos das andanças do Dançarino de Espadas pelos campos de batalha entre esse Véu e o Outro.
 - Não sei de nada, o cara foi comprar cigarro e nunca mais voltou... - os dois me olham com estranheza. - Por assim dizer metaforicamente... Mas me ajudar no quê?
 - Sabemos que seu propósito nessa missão é maior que muitos imaginam. - diz a Rainha de metade do Reinado de Hibernia, a outra metade tá pesando nos ombros da Raine, coisa que ela não quer nem ferrando. - Suas aventuras são conhecidas, Filha dos Ventos, apenas não compreendo o porquê entrelaçar a sua missão aos propósitos de meu reino.
 - Opa pera lá que não tem dessa não... - eu digo com metade de uma tortinha de limão mastigada na boca. - Não sigo reino algum, não tenho afiliação a nenhuma casa ou monarquia, whatever dos dado aguado, beleza? Nem posso, isso traria mais problemas pra vocês que...
 - Percebi isso a tempo, muito obrigada. - diz a Realeza, eu tenho que engolir a papa da tortinha com metade do café expresso pra poder me segurar para não replicar. O pai zeloso mostra ao filho como é a brincadeira do roubar nariz. Gente... Eu devo estar pirando na batatinha, mas ver o Mendigo de Arges sendo tão doméstico me dá esperanças na Humanidade. Ou não. Já disse que esse fedelho é probreeeeeema?
 - Tá, beleza. Tem umas parada aí pra resolver. Coisa cabulosa que não tem como explicar sem fazer algumas pessoas cuspirem óleo de motor e rebimbocas da parafuseta... - eu delibero o que acabei de falar, foi o que aconteceu com a Kris semana passada. Por que raios tou falando isso? - Não que tenha acontecido isso! Haha! Até parece alguém botar componentes eletrônicos pelas ventas, né? Nonsense...
 - Papa, menina engraçada! - a criança exclama na mesma voz estridente. Será que é um boggan? Tá com cara de nooker com esse macacão... Mas não desmontou nada ainda, xingou, então volto pra boggan. Ele é terno e compreensivo. Ele abraça o pai como se fosse algo muito precioso, assim como a mãe. Eles são uma família agora, não há como negar. O mundo inteiro vai chiar por conta disso, mas eles são uma família. A Família. Nuala voltou ao trono oficialmente contra as invasões vindas do leste. A herança continuará, Hibérnia voltará aos modos antigos de governança, assim espero. É menos bagunçado. Tem mais vantagens para mim, tem mais histórias para contar.
 - Oh toquim de gente, cê fica quieto aí... - eu passo um pedaço de baguete com geléia para ele. A criança nem pensa duas vezes para devorar o naco de pão. O pai zeloso ri para si mesmo, orgulhoso de saber que o filho é amistoso com gente como eu. A Rainha passa os dedos nas madeixas do marido e beija sua testa.
 - Irei pegar as flores com Albertine... Vocês dois se comportem... - e olhando diretamente para mim - Você, cuidado com o que diz. A minha criança aprende palavras novas muito rápido.
 - Veneza, tia... - dou okay com as mãos ocupadas com uma xícara de café e outra com um pedaço de rosquinha. O moleque já belisca algo na torta que o pai pediu. A mãe atravessa a viela e vai para a lojinha antiga do outro lado - Sério, dude! Cê tá louco ou veio com a bagagem de milhares de anos cometendo o mesmo erro?
 - Você não entenderia, Ângela do Caminho Prateado...
 - Sério? Tip,o vai me dar o discurso de que o Amor é que salva e tudo vai ficar bem? - eu aponto pro moleque comendo e para o outro lado da viela. - Você sabe o que acontece, você já passou por isso, camarada e não é nada legal... Eu sei disso, eu tava lá!
 - É diferente agora...
 - Você sempre fala isso! Sempre! Corte de Endymion nas Nórdicas: "É diferente", duas vezes após a queda de Roma, véi! E se lembra do que aconteceu da última vez com o pai da Raine te caçando que nem cachorro louco? Era diferente também.
 - Eu a amo mais que tudo nesse universo, nada vai mudar.
 - O seu amor é maluco. Fofuxo e sincero, mas insano. Essa porra... ooooops foi mal moleque... esses trem pode te matar. De novo. - eu engulo o restante do meu café e reparto uma rosquinha para o garotinho comer e se ocupar em não ouvir o que a gente fala. - E cê sabe o que acontece quando você morre.
 - Nós queremos te ajudar, Filha dos Ventos, apenas isso.
 - Ninguém pode me ajudar, okay? A bagunça toda tá feita, eu tenho que arrumar, esse é o caso.
 - Temos um problema diplomático a resolver e a filha de Fionntáin não respondeu aos nossos apelos. Ao invés disso, coloca uma mera humana para guardar a passagem entre os mundos. Isso parece sensato para você? - eu penso um pouco no que ele diz, eu também temo pela bagunça linda que pode ocorrer se a Kris falhar em segurar as pontas. É por isso que tive que fazer o acordo com o Quentin, é por isso que tive que aceitar essa missão. É por isso que tou aqui já faz tanto tempo que perdi as contas.
 - Kristevá é uma boa garota, tá? Meio avoada das ideia e surta um bocado, mas ela dá conta do recado.
 - Nós discutimos as possibilidades e talvez um prisioneiro de guerra possa tomar conta do lugar...
 - Okay, cê pirou na soda né, bruxão?! Botar um hobgoblin no Metrô? É isso? É isso mesmo que você tá me dizendo que é ajuda? Por que não arranja um xaã deles também amarra uns 10 quilos de C4 nos pra melhorar a situação?
 - Nós ouvimos sobre a garota e não gostamos de como ela lida com o nosso mundo.
 - Ela tá acostumando, beleza? Raine tá cuidando disso. É tipo terapia intensiva de choque, algo assim... Ela vai se acostumar logo com a tarefa.
 - Eu nunca me acostumei, criança... - o pai evitou olhar para o filho e mirou seus olhos para o chão. - Sofri demais debaixo daquele lugar. Todas as dores possíveis, Ângela. Apenas o Amor me salvou. O Amor de Nuala e a nossa conexão. E você foi responsável por isso. Sem você na nossa vida não haveria esse tesouro nos meus braços... - ele diz fazendo carinho nos cachinhos do filho.
 - Cê ficou muito meloso depois que casou. Muito brega.
 - Seu Mestre me disse que você acompanha a mesma breguice.
 - Eu gosto de zoar com música brega, mas não sou assim, tá? Sou uma criaturinha miserável cheia das ideia errada. E não fui eu a responsável pelo destino de vocês terem finalmente se encontrado: vocês dois fizeram por onde, eu só tava ali no lugar e hora certa pra assegurar que tudo ia ser de boas. Né, moleque? Teu pai não é o fodão? - não consegui me conter.
 - Por favor, menina! Não fala essas coisas na frente dele! Henry, você não prestou atenção no que a tia disse, né?
 - Não, não papai fodão...
 - Oh por Odin de saias... - o pai zeloso estapeou a própria testa e eu ri alto. Crianças são tão incríveis! Mesmo aquelas que podem ser o principal motivo de uma guerra entre clãs daqui alguns anos. - Não repita isso na frente de sua mãe, ela vai me matar...
 - E vai por mim, moleque, quando teu pai morre, metade do meu trabalho vai pelo ralo... Sem contar que tua mãe desceria do salto soltando bafão com o resto do mundo... - e me virando para o homem antes um indigente em uma estação de metrô fantasma entre os Mundos. - O que definitivamente não quero. A Chefia já tá cheia de pendengas...
 - Sua Chefia tem um sangue ralo para decisões importantes...
 - Véi, a Raine faz o que pode!! Cê ia gostar de esquentar trono que NÃO quer ocupar?!
 - Colocando uma mera mortal como guardiã do Arges foi sensato?
 - Não foi a melhor ideia, mas cê vai voltar pra lá? Não, né? Tivemos que achar alguém aproximado... A tua família meio que tá caída, cara... ninguém mais do mesmo sangue e ela nem Acordou ainda...
 - Queremos que diga a Raine que estamos dispostos a negociar com ela, desde que suas decisões sejam responsáveis e sem intenções obscuras. - tento não sapatear no lugar, a situação ficou tensa. Eles sabem! Como em que raios eles sabem?! No fucking way! - Apoiamos as decisões dela, mesmo sem a formalidade entre os reinos, mas ela precisa entender que...
 - Primeiro fala que a Chefia é franguinha e agora isso? Véi, decide aí, confunde os cocos aqui...
 - Admiro a posição de sua Chefia quanto a estrangeira, mas quero o bem de todos menina... A filha de Fionntaín precisa se firmar em suas alianças, formalmente e deliberadamente. Estamos oferecendo uma.
 - E donde isso vai me ajudar?
 - Como minha esposa disse: sabemos de sua missão.
 - Ah não sabem não, tenho certeza disso... - eu replico rapidamente, a criança saiu do colo do pai e foi brincar com uma borboleta ali perto. Em seus passos dá para ouvir a pequena orquestra de pianolas infantis com tamborilados de dedos em madeira nova. Esse guri quando crescer vai ser um probreeeeeema... Mas por tudo que acredito até então, ele pode ser quem ele quiser! Que dádiva! Eu tenho que mendigar por quem eu sou, cumprir uma missão que não era minha, e esse moleque de 3 anos pode ser quem ele quiser ser.
 - Sabemos da parte em que concerne as nossas vidas. - eu engulo o restante da rosquinha e peço outro café pro atendente de longe.
 - Como você vai me ajudar? Vai tirar o pózinho de pirimpimpim da onde? Tenho que fazer desejo a uma estrela cadente, algo assim? - comento já de saco cheio desse encontro. Nada sai do jeito direito como supostamente deveria ser. As pessoas desse século esqueceram de ganhar pontos na árvore de ser explícitos em suas opiniões.
 - Entregamos o prisioneiro de guerra e você coloca ele no lugar da humana.
 - Kristevá aguenta o tranco, já falei. - o olhar do Mendigo do Arges mudou instantaneamente, atravessando qualquer muro que eu tenha colocado esses anos todos.
 - Isso não é uma oferta de boa vontade, menina. Ele não pode ficar conosco, é perigoso demais. O lugar dele é no banco e na parede.
 - E eu tenho que ficar com a batata quente?!
 - É isso ou enfrentar as consequencias se ele fugir...
 - Véi cê tá muito dramático e nem são 9 da manhã ainda...
 - Damático papa! - exclama o menino.
 - Viu? Até o guri sabe do dramalhama que você apronta! - o olhar do mago mais poderoso que já encontrei em minhas vidas não muda em nenhum instante.
 - Filha dos Ventos, também temos nossas maneiras de ver o futuro e o passado. O poder do Grande Corvo do Eire continua atuando em nossa Corte, e o prisioneiro trará grande desgraça ao meu povo e ao povo de Nuala. Isso eu não permitirei jamais. - eu dou de ombros derrotada. Já sei qual vai ser o pato a se pagar nisso. Botar um líder hobgoblin nervosinho cheio de marra e prepotência guardando o Arges para aliviar a tensão de ambas as partes. Oh tarefinha medíocre... Aquele mural de ladrilhos lá embaixo no Arges vai ficar enfeitado com cada imagem - Irá aceitar, sim ou não?
 - É, aceita ou não? - perguntou a criança de forma parecida do pai, eu sorrio com a imitação. Aperto o nariz do moleque para fazê-lo se calar.
 - Quem é o cabra? Só pra título de curiosidade, já que vocês parecem ter prendido o Messias ou algo assim. - a música que o guri deixa ecoar com sua magia é substituída por um som familiar, algo misturado entre ondas do mar, o vento do litoral, com a leveza de passos em pedra antiga. Essa música costumava me fazer acordar no meio da noite, feliz por saber que tudo iria dar certo e que poderia confiar nisso. Minha garganta tranca com o engasgo que me dá ao perceber que esse tempo todo, na mesa ao lado estava meu antigo mentor. Stardancer, Dançarino de Espadas, Amigo dos Perdidos, Nômade do Caminho Prateado. A única pessoa nesse mundo e nesse Tempo que eu desistiria de tudo apenas para ficar ao seu lado. Oh porcaria...
 - Não é uma figura messiânica, mas... - os olhos dele encontram os meus, é um apelo estampado ali? - Causou danos irreparáveis nas negociações com o leste.
 - Ele é tapado assim mesmo, não sabe usar carisma mais lábia nos esquemas... - eu desconverso, meu coração revirando no peito, indo para a garganta sem eu entender o porquê. Por que ele ainda causa esse tipo de reação no meu corpo? Ele não é nada meu! Comprou cigarros e nunca mais voltou!
 - Dançarino de Espadas...? - o pai zeloso se vira na cadeira e Stardancer responde por trás do jornal que lia, o chapéuzinho de feltro desgastado pelo tempo, óculos escuros redondos tapando parte da cicatriz no rosto moreno.
 - Argento... - ele responde naquela voz de sempre, aquela que me deixa com vontade de pular no pescoço dele e cobrí-lo de tapas, mas também de beijos. Hey! No rosto, okay? Não sou idiota de me apaixonar pelo meu próprio mestre, isso é coisa do Quentin, não minha! Mas porra, ver o Stardancer ali, em toda sua glória passada, pose de fotógrafo bonzão e metade de um século pesando em seu semblante, isso foi o ponto alto da minha vida até então. Ganhou até da competição de panquecas em Arkansas.
 - Gaimer?
 - Ângela. - a troca de palavras é pouca a de olhares fala mais. Ele me conhece como a palma da mão dele, eu apenas sei o que já ouvi nessas muitas andanças. E por isso que o respeito mais que qualquer ser vivo nesse mundo. Ele pode ter cometido os erros do passado, me deixado com a batata pelando e prestes a explodir, mas ele foi o cara que estendeu a mão quando pensei que estava perdendo minha sanidade. Quando era criança demais para entender a minha importância, Stardancer foi a razão de Filha dos Ventos nascer. Não mais uma menininha estúpida esquecida pelo sistema. Esse camarada me deu vida. E partiu meu coração com tanta intensidade que a minha vontade de morrer foi imensa.

Ele se levanta da mesa e chega perto de nossa mesa. Eu tento levantar com alguma graça que me resta, meus joelhos sempre falham quando a ansiedade tá em alta, o abraço que sinto me sufoca, me preenche, me aquece de uma maneira que jamais quero sentir novamente. Ele ocupa todo o espaço que posso para me fingir de boba, de sair de fininho, de ser distante. Sua voz baixa em meu ombro dizendo que agora tudo estava bem e o beijo em minha testa como sempre deu quando eu era ingênua demais para perceber o quanto estava errada. Meus joelhos tremem novamente, quero chorar. Assim de verdade. Muito. Mas não posso, não é justo, não agora após anos sem vê-lo, com toda a bagunça do Quentin e minhas certezas sendo esmagadas uma a uma no decorrer da carruagem. Não agora, por favor...

Devolvo o abraço trêmula, sem saber se correspondo as expectativas dele, sempre foi assim: ser a melhor aprendiz para deixá-lo orgulhoso de mim, mas o que ele queria era exatamente o contrário, era que eu sentisse orgulho dele. Ele falhou amargamente com Quentin, falhou comigo e o que acabou limpando a sujeira é um maldito abraço no meio de uma viela parisiense. Ele se afasta um pouco, me olha nos olhos, olhos escuros que encaram os meus com convicção. Eu não consigo encarar por muito tempo, não há como não transparecer o quanto eu sentia sua falta, o quanto chorei por não tê-lo comigo nas horas mais difíceis e nas felicidades. Pelos deuses não é paixonite aguda, é algo a mais que mal compreendo que exista entre a gente.

 - Parece-me que isso é um sim, não é Filha dos Ventos? - diz a Realeza Nuala com um buquê de flores tão lindo que exala ao redor com pequenas manchas de tinta espalhadas ao vento. Meu abraço em Stardancer aumenta, não quero que isso seja um sonho. Não de novo.
 - Vou pensar no teu caso... - eu replico com a voz embargada de emoções contraditórias. Gaimer Jones, Stardancer, o meu mentor está de volta ao jogo. O jogo que supostamente eu deveria entender como funciona e também apostar nos lances da próxima partida.

Por que tenho que aceitar isso?
A resposta vem ao me ver afundando meu rosto no ombro dele e o apertando contra mim com mais força. É involuntário. 

Malditos hibérnios e seus modos de negociação movidos à emoção.

  

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