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10 outubro 2016

[conto com angie] os poucos que choram


Título: os poucos que choram (por BRMorgado)
Cenário: Projeto Feéricos.
Classificação: 14 anos.
Tamanho: 1037 palavras.
Status: Incompleta - 1/?
Resumo: no começo tudo era diferente, e continua sendo mais confuso ainda quando se cresce.
Disclaimer: Esse conto faz parte de algum rascunho perdido meu do Projeto Feéricos que vocês podem ver os pedaços sendo costurados aqui nesse post [x]

Trilha sonora: The Cure "Boys don't cry".




===xxx===
O almoço inexistia, nem o chá das cinco, aquele lanchinho da tarde esperto, muito menos alguma coisa entre a manhã e a noite. Era como manter vigília por tempo demais, seu corpo infantil não aguentaria muito tempo, com certeza aquele médico do posto estava certo, sentir o estômago corroendo algo dentro do seu próprio corpo fazia parte de sua rotina desde criança, mas aquele dia estava tenso, muito tenso.

Sentou no meio-fio olhando o que conseguira no caixote perto da lixeira do restaurante chique do centro de uma cidade qualquer, um pedaço feio de carne com arroz e feijão encrustado em uma placa meio congelada em volta. Era tentar ou tentar.

Verificou o cheiro da carne, passável, tocou a textura da mistura, comível.

Abriu a sacola de supermercado que pegara no Posto 2 e depositou seu tesouro do dia ali. Se tivesse sorte - e o sol forte ajudasse - chegaria debaixo do viaduto e esquentaria uma marmita com o que conseguira hoje.

Agora era passar um tempinho na rua pedindo para ver se alguém liberava umas moedas para comprar refrigerante morno no barzinho do outro lado do Posto 2.

Era um dia especial, oras! Conseguir carne na lata de lixo era difícil, tudo bem que a gororoba acompanhada não parecia tão feliz, mas agradecia muito a Sorte por conseguir finalmente pegar um naco mais parrudo de carne.

Hoje era o dia. Um grande dia!


Tinha 9 anos completos e os pés no chão, sabia muito bem o que queria e como queria, ninguém a levaria de novo para aquele pesadelo chamado casa de acolhimento, fugiria novamente se tentassem dobrá-la. Os sonhos ficaram intenso depois que a Estrangeira de chapéu de feltro se foi, deixando alguns pertences esquisitos e uma carta com um endereço no envelope. Pegou a sacola e foi ziguezagueando pelas ruas da Metrópole tão conhecida.

Sentia falta da Estrangeira de chapéu de feltro, ela participou de grande parte dos seus últimos anos que não sabia muito bem com lidar com a rejeição de ser abandonada (novamente). Tudo bem ter pais que não aguentam o tranco, mas passar meses ao lado de alguém que supostamente deveria cuidar do seu bem-estar foi uma provação bem difícil para Angie. Se pudesse teria apagado essas lembranças de sua mente infantil e iria para a próxima fantasia. Mas a barriga não deixava.

Mais um ronco sonoro, a decisão deveria ser feita logo, atravessar metade da cidade, pegar os trapos debaixo do viaduto, vencer a letargia que atacava após devorar a comida passada de latas de lixo por aí e ir pra Central. O dinheiro para a passagem tava ali dentro do tênis furado, com a meia até metade da canela, guardado com mais outros trocados e um papelzinho amarelo com um endereço rabiscado pela Estrangeira de chapéu de feltro.

Correu por mais uma quadra para não perder tempo, encontrou a ponta do viaduto e saiu saltitando entre as escadas, os caixotes empilhados, a guarda de ferro que colocaram no portão interditado para que ninguém passasse por ali (E perigosamente sofrer um assalto, tanta pena deles!), jogou o conteúdo da sacola em uma lata de ervilha de tamanho considerável e foi brigar com a caixa de fósforos.
Não era nada habilidosa com fogo.

Encontrou um jeito de acender o fogo improvisado debaixo da lata e esperou o cheiro da carne tostada atingir suas narinas. Isso sim era vida! Às 18h10 da noite, uma criança de 9 anos devorando o conteúdo poro de uma lata de ervilha abandonada, não se importando se tinha algo com gosto esquisito, botou tudo na boca e terminou o "prato" em menos de 5 minutinhos. Dobrou o colchão fino que Bram-bram havia dado e recolheu seus pertences. Tentou encaixar tudo ali perto e dar as coordenadas depois para o povo que viesse ocupar o local mais tarde.

Era hoje ou nada.

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Não se despediu, sabia que não voltaria tão cedo.

Recebeu vista grossa de um segurança capenga, mas do bilheteiro foi sossegado, recebeu os trocados e mecanicamente rasgou o bilhete para entregar a via para a menina magrela pela privação de nutrientes e alta para sua idade. Entrou na plataforma, olhou para os dois lados, não havia ninguém aquela hora da manhã, emenda de feriado era sempre assim, uma viva alma na rua. Esperou o movimento quase nulo cessar, ouviu atentamente se alguma locomotiva vinha distante. Prendeu a respiração e pulou nos trilhos.


Seus pés doloridos quase tropeçaram nas barras de aço do trilho. Sentiu o frio metal roçar por cima de sua perna direita e o ardor que aquilo produzia, mas já acostumara com certas coisas: toda vez que tocava metal frio sentia arrepios, às vezes se afastava em pânico, em outro aquela sensaçãozinha chata de comichão que não a abandonava por muito tempo. no trilho ficou por alguns segundos até decidir seu caminho novo.

A locomotiva de minério de ferro parecia perfeita demais para ser verdade. Agarrou melhor seus poucos pertences, respirou fundo novamente como uma criança crescida poderia fazer e entrou em um dos vagões do trem para a parte sul do país. Assentou-se entre caixotes de madeira e escondeu-se como podia dos olhos de algum vigilante ou fiscal. Hoje era seu grande dia: o dia em que descobriria o mundo como ele era.

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Os cinco dias que se seguiram entre paradas, passando no meio das cidades, manteve o regime prático de comida só quando a coisa apertava mesmo. Tinha uns trocados para café, mas não iria gastar seu rico dinheirinho com café passado na hora. Haviam outros que necessitavam de suas mãos, mas ela não poderia abrir a mão para isso. O estômago roncava insistentemente, a deixando com mais fatiga, esparramada entre os caixotes, torcendo para que o trem chegasse logo a estação da Metrópole. Tantas oportunidades!!

Pela fresta da porta do trem lhe deu o vislumbre em uma noite clara: a iluminação quase etérea de uma ponte pênsil. Sabia que tipo de ponte era porque Zé Ferreira conhecia o linguajar dos engenheiros, imediatamente saiu do lugar em um pulo empolgado, tonteando para um lado e outro até olhar com mais atenção para a fresta da porta. Ali seria perfeito para realizar coisas.

Na próxima parada sairia de fininho do esconderijo.
Na próxima parada seria quem queria ser desde novinha.

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