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13 março 2017

[rosenrot: o colégio carmim] pequenos fatos

[esses são alguns rascunhos na fila sobre o meu cenário de RPG para Mundo das Trevas Clássico - Rosenrot: o colégio carmim. Tava ativo entre 2003 a 2006, mas acabei não escrevendo mais. Peguei alguns contos que já tava na cachola e coloquei alguns elementos do cenário. É praticamente ressuscitar plot já morto *no pun intented*]

É uma cadeira simples, madeira, escurecida pelo tempo e pelo o que seja que já passou por ela. Disseram que seria indolor, duraria por alguns segundos. 
Pareceu uma eternidade.


Os gritos estridentes, o ruído da tempestade, os grilhões, o calor escaldante, a areia. 
Areia em tudo quanto é canto. 
E de repente essa memória que me persegue desde criança, uma masmorra escura, fria, congelante, mãos para cima, braços doloridos e esfolados, pés mal tocando o chão, apenas um breve aliviar dos dedões do pé encostando para manter um ponto de apoio. O cheiro é horrível, invade meu nariz e me faz querer vomitar, mas aí percebo que não há comida em minha barriga há muito tempo.

Tudo é quieto e assustador. Estou com medo, muito medo. Tremendo e evitando não gritar para fazer esse silêncio maldito ir embora. A areia está em alguns cantos, mas está ali, cobrindo meus pés, salgando parte do meu corpo, ferindo meus olhos com alguns grãos. O tilintar dos grilhões é de minhas mãos, correntes presas no teto da cela e me pendurando como um pedaço de carne em açougue.
É isso que sou para ele.

A noção de tempo aqui não existe mais e se o inferno cristão é verdade, não poderiam ser mais criativos. Eu sei bem quem é meu captor, quem é meu inimigo particular, meu demônio sangrento que irá me atormentar para resto de minha existência. Até ele morrer de verdade, não terei paz. 

Não quero paz, não aprovo a paz. Se o sangue é a vida, é isso que ele apenas terá. Sangue dos que ama nas suas mãos e nas minhas. Principalmente nas minhas.


Passos no silêncio, arrastados, sem coordenação, não é ele, é um dos outros. Tento desesperadamente puxar os grilhões para fora da armação de correntes no teto, nada além de mais dor e feridas em meus punhos. Preciso sair daqui, preciso sair daqui, preciso...
 - Oh minha criança... Tão aflita e fraca... - a voz me atinge como uma faca de lâmina fria, descendo do peito para meu estômago, vagarosamente. Não é um deles, é pior. Era a minha amada até a desgraça atingir nossa família.

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A rotina é a mesma aqui em Rosenrot
A escola pode ter ido pro chão uns anos atrás, mas não há nada que os Corvinus não façam pra manter a mamata deles. Desvio, lavagem de dinheiro, sonegação de impostos, falsificação ideológica e de propriedade. Tudo que for para manter o verdadeiro motivo desse lugar funcionar será feito.

Por isso tou aqui. Observando. 
Vendo se está tudo nos conformes, vendo se não quebram as regras. 
Por mais nobre que seja a missão da Irmandade, não quer dizer que não sejam capazes de cometer pecados. A pedra fundamental dessa construção está impregnada de sangue dos inocentes e a corrupção é a opção que temos.
Minima de malis.

Pelo menos mantemos essas aberrações longe do convívio dos inocentes. 
Aquele moleque do terceiro ano, por exemplo. Vai virar um psicopata com aquele fetiche de ficar seguindo os professores. E aquela turminha que acha que não sei que usam o banheiro em reforma pra fumar? Todos uns delinquentes que se saírem daqui vão causar muito estrago lá fora. As novas aquisições também não estão sendo as melhores, muito pirralho do interior, cheio de manias esquisitas, se comportando como animais nos intervalos e antes de irem pra cama. Vi um deles com outro no portão dos fundos fazendo você sabe o quê. 
Não tem noção alguma de decência.

A maioria não comparece a missa de domingo, não respeita o Evangelho, não dá a mínima pra palavra do Senhor. Todos condenados. E essa Irmandade também é. 

Última vez que tentaram invadir o prédio pra pegar um dos guris do interior na porrada (algo a ver com ter mordido o traseiro de algum traficante aí), o povo da biblioteca botou eles pra correr. Aí que os boatos começaram.
E boatos aqui não costumam ser meras fofocas.


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Tou com fome. 
E num tesão fudido. 
Tudo junto. E mais um pouco. 
Esse aqui da frente tem um cheiro muito gostoso, tem que se controlar pra não passar vergonha. 
Ficar de pau duro na frente das gurias já ferrou com a moral do novato do interior, ninguém dá mais ideia pra ele agora. Esquecido no corredor e nem vai pros rolê com a gente. Isolado lá no fundo, porque loser desequilibrado não tem vez na nossa gangue. 

Mas que porra que hoje a gótica decidiu usar perfume mais forte? E aquele grupo de cdfs ali na frente com cheiro azedo de leite e cereal. 

Porra, não dá pra sair da aula agora, não quando é a fessora marrenta explicando esses números fodidos. Vou rodar de novo, vou rasgar a porra do boletim e mandar todo mundo a merda. Vou voltar pra Romênia e levar a gangue pra lá. Lá dá pra proteger nossa família sem esses franguinhos de encosto na nossa superioridade. 

Oh ótimo, o loser levanta a mão e responde certo. 
Babaca do caralho, tá na hora de botar seu traseiro peludo no lugar.

Ri alto, Corine tocou o foda-se e largou uma pro babaquinha ver quem manda aqui. 
Se encolheu que nem galinha no poleiro. 
Cachorrinho  de madame, não serve nem pra reproduzir. 
Vai virar um ermitão lá dos obeliscos e ser um hippie chapado. 
Esse aí não tem chance na gangue, na tribo e muito menos no clã. 
Os Romanov tem padrões altos nessa porra! Meu avô não deixa moleza nessa não!

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A pixação continua no mesmo lugar. 
Tenho certeza que raspei o teto na semana passada. 
Essa merda de lugar tá me enlouquecendo. 
Tou vendo já, camisa de força, drogas o tempo todo, terapia de choque. 
Foram o que fizeram com o último que morou aqui nesse quarto. O rapaz ficou biruta depois de uma missão e saiu tocando louco na geral. Machucou uns estudantes mais novos com o círculo, ganhou uma patada na cara que nunca mais acordou. Disseram que ele foi pro laboratório do porão, que logo ele volta, mas todo mundo sabe o que acontece quando um mercador mete porrada na tua fuça: cê vai pro mundo lá fora e não tem mais chance de ser aceito entre os nossos.

Merda. 

Odeio latim, acho pavoroso, essa língua furiosa e assassina. 
Matou meu povo por séculos, fez minha língua desaparecer, contou a história toda ao contrário. 
Já ouviu falar de Inquisição? Parabéns! 
Acho que se causar um pequeno incêndio controlado aqui pra cobrir essa frase hedionda, sou suspensa?


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Não não não não não não tá acontecendo, não não de novo não!! 
Juro que a mão escapou! Porra, eu não tô preparada pra isso!! 
Não não não, vai levanta, se mexe, me ataca de novo, porra!! 
Me morde, sei lá, reage!! 
Não não não muito sangue, sangue espalhado no chão, na parede. 
Não era pra ser assim. 
Era pra negociar, pra fazer essa coisa mudar de ideia com o empréstimo do patrão, não espalhar os miolos dele no apartamento dele!! 
O que raios eu faço?! 
Que diabos eu faço?! 
Por que fui nascer assim?! 
Não quero ser assim!! 
Euvouproinfernovouproinfernovouproinferno...


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Irreconhecível. 
Não dá pra saber onde começa e onde termina. 
Ela ouve o mesmo ruído que eu. 
Onde foi que perdemos nossas lembranças? 
Felizes, em paz, usufruindo de nossa juventude. Onde foi que...? 
Abriu a carta de recomendação, acho que agora percebe qual sua importância nesse momento. 
Um sorriso rasgado por lábios inchados, um dente trincado. Lindo. Maravilhoso. 
A areia que nos guia na ampulheta é a mesma onde pisamos descalços no Nilo. 
Oásis no deserto, perdição de exploradores, nosso Paraíso particular. 
A tempestade não a maltrata, não a macula, apenas brisa. 
Minha linda ampulheta... Grão por grão caindo em um espiral de...


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O grito foi alto dessa vez. 
Tá difícil de me manter concentrada com essa companhia de quarto. 
A pichação saiu depois do incêndio, ela ajudou a lavar a fuligem quando fomos catar os resíduos do feitiço. Ela é prestativa. Obediente. Sombria. Um poço de emoções que eu não tenho coragem de olhar muito tempo para esses olhos escuros. Mas ela grita ao dormir.


Coloquei ervas debaixo do travesseiro, algumas pedras energizadas no colchão. Fiz o favor de espalhar uma aura tranquilizante da última vez que a gente fez amor. Ela continua gritando ao dormir.
É um grito silencioso, agonizante, de uma dor imensa que traz toda a memória de volta. Grilhões, sangue, areia, tempestade, maldição.

Me falaram que é comum eles terem pesadelos com o que foi e o que jamais irá ser. 
Memórias de outras vidas que rasgam seu coração. Eu queria que esse coração batesse por mim, apenas por mim. Mas há 42 juízes entre a devoção dela e os meus sentimentos.

Deixo meu grimório de lado no chão, desconjuro o círculo ao meu redor, vou até a cama improvisada com livros e colchão velho que ela habita, me envolvo nos lençóis, costume nosso, os lençóis que minha mãe usou em suas núpcias para me conceber. 
Ela não sabe disso, ela não precisa saber. 

Porque o que nos protege é o amor que nos une, década, séculos, milênios. Ela não sabe, eu guardo as lembranças. E quando estamos juntas, realmente juntas, abrindo mão das vulnerabilidades, das fraquezas, dos preconceitos, das regras do jogo, ela se entrega verdadeiramente, eu a entrego aos deuses que a preservam.

Deito sob seu corpo suado, trêmulo, gasto, meu rosto colado em seu pescoço de veias visíveis, rasgado pela violência do tempo, sangue esse que me é precioso por ser sua fonte de vida, sangue esse que tantos deles desejam, esse coração palpitando deveria ser meu, apenas meu. Esse sangue, esse abençoado sangue, era meu até eu errar pela primeira e última vez. Meu destino é viver mil vidas para acompanhar a única vida dela. Grilhões é como chamam, eu digo que não me priva nenhuma liberdade, mas sim me fortalece.

Sinto seu cheiro, puro, febril, decadente, aroma esse que me atraiu no mesmo instante. Mais do que aqueles garotos do interior (e que só servem de guarda-costas, nunca amantes), essa pele castigada pelo sol das areias infinitas, me atraiu como mariposa na luz cegante. Lembranças de milênios que meu espírito consegue resgatar nitidamente. Para ela, recordar é matar, matar uma parte de si para acessar algo que não irá recuperar mais.
Amaldiçoada, eles disseram. 

Seu rosto se contorce em um choro contido, dormindo profundamente, pernas em volta da minha cintura, proximidade. Deixo-a se envolver em mim, como fazíamos antes séculos atrás, Unidos em um corpo só, onde começa, onde termina?


Dou um beijo calmo em seus lábios inchados, a resposta é imediata, um pequeno gesto convidativo dos quadris, a pequena chama que brota de meu coração para o plexo solar. Equilíbrio, vitalidade, criar vida. Antes podíamos isso. Minhas mãos acariciam um rosto que minhas lembranças não mais reconhecem, diferente dos meus desejos, irreconhecível.

Beijo-a novamente, com mais fervor. Arranco um gemido confuso e questionador. Um coração que bate mais forte, um desejo que sempre esteve ali. Nós pertencemos uma a outra, não há como lidar. Espero ela abrir os olhos pesados para que eu possa retirar minha blusa. Ser puras nunca fez parte de nossa convivência. Fazer amor semiacordada, ela é expert nisso, como se o estado letárgico a incentivasse mais.

Enquanto ela espalha beijos entre minhas coxas e meu sexo, olho para a parede de tonalidade diferente. Eu murmurando preces que só alguns poderiam ouvir, ela principalmente. Chamo-a pelo nome que antes era só seu e só meu para usar. O pesadelo de antes, a dor e a culpa são meros detalhes no grande esquema das coisas. 
Aqui nesse quarto amaldiçoado em Rosenrot é onde cultivo meu reino particular.
Oásis no deserto.

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- Caramba... 
- Sério isso? 
- Como é que? 
- O que que eu faço? 
- Esconde o corpo. 
- Chama um zelador. 
- Bicho, olha só pra isso! Não tem como zelador dar jeito nisso. 
- Tá ligando pra quem? 
- Vai falando isso que ela come teu fígado, literalmente. 
- Você fez isso sozinha? 
- E-ele m-me atacou! 
- Não mediu a mão, hein novata. Parabéns! 
- Como é que se sentiu? 
- Poder. 
- Sim, poder. Mas não deixa isso subir pra tua cabeça.


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 - No que tá pensando? 
 - Em como a gente se dá tão certo. Era pra ser assim? 
 - Você quer que seja assim? 
 - Não vou conseguir responder com você fazendo cafuné... 
 - Desculpa, força de hábito. 
 - Eu não sou ele. 
 - Eu sei. 
 - Não tenho o que ele tem. 
 - Eu sei bem. 
 - Não posso ser como ele. 
 - Você já é. 
 - Um amaldiçoado? 
 - Meu eterno amor. 
 - É trágico isso, vivemos, somos destinados a nos encontrar, nunca sermos felizes por muito tempo, morrermos e o ciclo vicioso. 
 - Oportunidades que devem ser aproveitadas, eu diria.


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A gente já conhece de longe, dorme na aula, faz porra nenhuma o dia todo, fica a noite na rua fazendo arruaça, morrem antes dos 30. Eles tem mais privilégios que o restante dos estudantes. Eu também não seria idiota de não deixar eles mais a vontade, um sozinho consegue explodir metade do laboratório de química se está em dias ruins. E os dias ruins estão ficando rotineiros.
Os zeladores perceberam que eles tão mais agitados, farreando mais, ansiosos, respondendo mais. 

Os recém chegados do interior são os que protejo mais, essa garotada não tem muita perspectiva de vida, a não ser aprender uma profissão que presta aqui na capital, voltar pra roça onde moram e trabalharem na lavoura e procriarem entre si. É pra eles que acordo todos os dias. 
Já esses que a gente sabe o que são? 
Privilegiados do caralho que não sabem o poder que tem.

A gente aqui na frente da sala de aula não pode fazer muita coisa, ensinar o básico pra entender a ler e escrever, dar noção de números, fazer eles se ocuparem pra não perceberem o quão condenados estão por serem quem são. 

O povo da biblioteca que faz o trabalho pesado, ensina as doutrinas, as rotinas, os rituais, toda a manha de fazerem o que nasceram para fazer sem mostrar pro mundo lá fora. 
Os zeladores dão os castigos. 
Os mercadores mostram o caminho mais violento e lucrativo. 
Os diretores nem se importam se essas crianças irão ser normais algum dia, ou se vão se sentir parte da Humanidade.

Nada me surpreende mais nessa vida de professor em Rosenrot. E vou fazer 30 esse mês e preferi seguir o conselho de um zelador: paciência e disciplina.

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