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03 junho 2017

como uma palavrinha muda tudo

A primeira vez que ouvi a palavra "dyke" (sapatão) em inglês foi nesse filme aí embaixo, nessa exata cena:


O ano era 1999, Garota Interrompida era um filme cotado ao Oscar de Melhor Roteiro Adaptado e Melhor Atriz Coadjuvante com Angelina Jolie (Lisa Rowe, a lorona mercenária) e na cidadezinha vilarejo brejeiro onde eu morava apenas uma locadora de vídeo cassete (Urrum VHS, isso mesmo) disponibilizava o filme para alugar.

Detalhe, o filme ficava perto do balcão, aos olhos da atendente, porque a classificação etária do filme era de 14 anos pra cima, o que numa cidadezinha brejeira católica tradicional mineira quer dizer 18 anos.

Para locar o filme foi um custo, tive que esperar todo mundo que era cinéfilo naquele buraco pegar para então colocar entre tantos outros títulos que eu gostaria de ver, o filme que a Winona Ryder conquistou meu coração, mas cometeu uma gafe incrível em romantizar o livro (Fui saber disso anos depois, tá?). Filme locado, hora de esperar o momento certo para assistir, não poderia ser com a presença de minha mãe ou junto da melhor amiga de infância, haveria de ser um filme para se assistir solo, porque muita coisa tava me levando a entender que aquele roteiro ali serviria para alguma coisa na minha vida.

E serviu. Garota Interrompida mudou a minha vida aos meus 13 anos e meio.


Eu não costumava ver filmes nessa temática (drama nunca foi meu forte) e sobre hospitalizações muito menos. Eu tinha uma certa ideia do que acontecia com as pessoas que tinham problemas mentais, nas 2 opções que o meu pouco conhecimento dava era Galba Veloso ou prédio 6 do IPSEMG. E de nada mais se falava. Falar de doenças mentais no vilarejo brejeiro era tabu, assim como outros assuntos pertinentes a sociedade.

O filme em si me chocou do começo ao fim, de rebobinar a fita e rever novamente para ter certeza que não tinha um plot twist diferente. Essa cena em especial me causou impressão de forma brutal, pois eu não havia prestado atenção que antes de entregar o prontuário dos diagnósticos para Cynthia Crowley, Lisa Rowe aperta a mão dela e diz "Congratulations" (Parabéns) como se fosse uma cerimônia de entrega de diploma ou prêmio, algo do tipo.

Aquilo ficou encafifado na minha cabeça, porque logo depois quando Janet (A menina magérrima com distúrbios alimentares) no seguinte diálogo:
Janet: Lisa thinks she's hot shit cause she's a sociopath.
(Lisa acha que ela é fodona porque é sociopata)
Cynthia: I'm a sociopath. (Eu sou sociopata)
Lisa: No, you're a dyke. (Não, você é sapata)

Eu já havia ouvido falar em pessoas sociopatas e pelo o filme deu a impressão que a criaturinha loira não era alguém para se conviver muito tempo (Manipular os relacionamentos entre os pacientes?!), E quando Cynthia intervém e clama o título pra ela também, vem a palavra que nunca havia ouvido: "Dyke". Que na tradução brilhante eles colocaram como "Sapata" - para ter um trocadilho com sociopata, sacas?

Enquanto há o diálogo, Susanna Kaysen, está procurando um dicionário de Psicologia para saber o que raios é aquilo escrito no seu diagnóstico (Boa, fonte primária!): "Borderline Personality Disorder" ou na tradução tupiniquim "Transtorno de personalidade limítrofe" (Dah hell como decoram esse termo?!), Lisa e Cynthia trocam olhares e sorrisinhos.

Essa reação pode ser interpretada de 2 maneiras possíveis:
1 - Lisa também é dyke, logo cúmplice da condição de Cynthia.
2 - Lisa está exercendo o seu poder de colocar Cynthia no lugar como não-sociopata - pois isso geraria concorrência.

A interpretação que o filme dá depois, é que a inclinação da premissa 1 pode ser a mais lógica, pois Susanna beija Lisa dentro do furgão e ela teve nenhum tipo de mecanismo de defesa homofóbico. Entender a época em que o filme se passa (Anos 60) também dá uma remexida em padrões de sexualidade/gênero. Mas são só teorias de um filme sem tanta densidade quanto ao livro.

Ao que dá para entender - e sou eu aos 13 anos e meio de idade em uma cidadezinha que tem notícias de famílias que surram seus filhos gays em público e, um ou outro assassinato motivado por homofobia - é que Dyke não parece ser um palavrão, mas não posso me apropriar (ainda). Ser Dyke é melhor que ser Sociopata pelo jeito. Cynthia Crowley se veste com os estereótipos do que a comunidade chama de "Bofinho" (ou "Butch" em inglês), no decorrer do filme há alguns takes com esse maneirismo. Para quem não sabia nada sobre o que era ser LGBTQ num lugar onde reinava a família tradicional mineira, ver esse filme já foi um avanço em 2 pontos que vou agora discorrer:

1 - Se eu fosse uma Dyke, logo teria que esconder isso.
2 - Se eu fosse maluca, logo teria que esconder isso.

Porque a sensação que eu tive em mim após ruminar o filme e ver a minha condição como pessoa naquele momento estava para essa delimitação de futuro. Ou eu fingia ser hétero e enlouquecia (armário de ferro, coberto por concreto e cercas de arame farpado em volta) ou assumia logo a homossexualidade e morria. Situações drásticas né? Pois então, cês já moraram em cidade do interior? Galera lá pega pesado na pressão psicológica e física. Só gente rica pode virar viado e sapatona, e mesmo assim é excluído de alguns lugares porque não pega bem para a imagem da família de elite.
(Aliás, rememorando aqui, nunca vi sapatona rica no vilarejo brejeiro... Só viado de elite que não conseguia sair do armário porque a influência dos pais na cidadezinha era alta demais...)

O ano era 1999 e eu já havia descoberto o que queria do meu corpo e minha vida sexual. Meninos são cafona e previsíveis, meninas são fofuxas e calorosas. A dicotomia menino/menina, homem/mulher foi se atropelando com o passar do tempo, pois a opção que escolhi ali em cima foi a 2ª - se eu fosse maluca, logo teria que esconder isso - e foi um sucesso. Ninguém sacou que tinha uma adolescente confusa, em estado de depressão moderado, preferindo passar horas dentro do quarto escrevendo cadernos e cadernos de histórias, prosas, letras de música do que realmente aproveitar o mundo lá fora.

Uma coisa levou a outra, a negação com o armário de ferro e os problemas psicológicos advindos disso. É uma maravilha essa de auto-análise, chega uma hora em que só dá pra sentar e rir, porque olha...

Ser sapata me foi um termo que preferi não me associar por muito tempo, até porque não me entendia (me sentia em segurança) em me nomear assim. Ser bichinha sim - olha a dicotomia que imperava - até descobrir que não queria ser nomeada de coisa alguma, dava muito trabalho e tinha toda uma relação de se identificar com o termo até na militância - só fui conhecer o movimento LGBTQ depois dos 25 anos, gente, perdi muita coisa no caminho. Então quando soube do não-binarismo (Obrigade Carmilla The Series, obrigade forévis!!) e como essas pessoas se identificavam com identidade de gênero independente da sexualidade, a ficha caiu tão bem que não teve muita argumentação interna de pertencer a um nicho ou não. Isso me foi um alívio, na verdade. Os temores dos meus 13 anos e meio atenuaram, as convicções de saber quem sou aumentaram.

E esse post foi patrocinado pela minha cisma com a palavra "Dyke" e porque acabei de googlear e tem uma deusa grega com esse mesmo nome [x] que a versão romana é a Dama Justiça. *mindblown*

Fun fact: No livro Cynthia Crowley não é muito mencionada, mas é uma paciente que visita regularmente as sessões de eletroconvulsoterapia, yep, choques.

Ps: alguém me explica por quê raios o livro vai pra 616.89/0092 B 20 (Ciências médicas? Terapias?) na CDD? Dewey seu tapado! É literatura de memória, cacete! 800 na veia!

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