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31 março 2019

Aquela duvidazinha que aperta

Acho que a primeira vez que desconfiei que talvez o mundo em que vivemos poderia ser uma paródia bem tosca de um simulacro mal feito de deuses cansados foi ao fazer uma redação sobre meu melhor amigo.

Eis a questão para crianças introvertidas: a gente não costuma ter tantos amiguinhos, mas a gente observa bastante as pessoas sendo felizes tendo amigos.
Não é uma necessidade crucial de convivência social, não vou morrer de tristeza se não tiver a presença de miguxes por perto ou diariamente - ffs não sou um bloco de gelo, apenas tenho aquele trem de precisar de espaço pra recarregar as baterias por conta das interações - também até agora não arranquei meus olhos fora por não ter alguém pra dividir a cama e as contas, afinal de contas, gosto mais da minha solidão do que a ansiedade, apreensão e embaraçamento de estar na presença de pessoas.

E na redação escrevi sobre uma amiga imaginária que sempre esteve comigo até me convencerem que amigos imaginários são fases da infância pra se acostumar com a vida cruel e chata. Mas escrevi sobre ela e lembro de terminar de escrever uns dois parágrafos - minha letra horrenda era grande naquela época, então ocupou a folha inteira - e me perguntar: "Será que os outros vão entender o que tou tentando escrever aqui?"

Então escrevi sobre meu cachorro (que era companheiro de brincadeiras e a amiga imaginária também era chegada nele) e pronto, passável.

Não lembro de admoestação nisso, lembro de me preocupar se escrever sobre alguém que supostamente não existe, mas que volta e meia me ajudava nas brincadeiras e nos estudos e no entender o mundo ao meu redor (era confuso pra cacete gente, sério! Cês já fizeram esse rememoramento de como as coisas na infância, apesar de simples, os adultos babacas complicavam com trocentas regras impossíveis?!).

A amiga imaginária saiu da "materialidade" que uma mente fértil infantil pode formar - era uma moça bem bonita, aliás, às vezes reconheço a voz dela em lugares e sempre quando decido seguir o que chamam de "instintos" ou "intuição", acaba sendo batata - ou tá corretíssimo ou vai dar muito pano pra manga - e habita minha cabecinha de melão cheia de ideias despirocadas, porque eu não deixei aquela redação matar a minha criatividade. Ou qualquer outra manifestação autoritária de estrangulamento de criatividade.

Mas fazer esse esforço de esquecer que essa ideia que era externa - pergunte a qualquer criança que tem amigo imaginário, a persona "existe" em algum level de materialidade, nos sentidos principalmente, eu costumava sentir cheiro de perfume gostoso quando a amiga aparecia, ouvia pouco da voz, mas o segurar minha mão quando ficava escuro no quintal dos fundos ou de ficar do lado da cama contando alguma história que dava pra gente brincar no dia seguinte (eu já havia sido introduzida aos blocos de montar, storytelling veio cedo aqui e culpo a uma fonte externa. Eu era uma criança essencialmente sem graça e não muito empolgada com pessoas) - foi a primeira impressão que "Yep, esse é o mundo que todo mundo parece ver, então é isso que vou ter que aturar? Desafio aceito, né?"

Minhas aspirações de botar fogo no putero eram altas naquela época.
E quando digo isso era de se subverter da ordem geral.
O desconforto tava ali de não encontrar lógica em algo padrão como "meninas jogam vôlei, meninos futebol e usam a quadra maior".

Não é algo pra uma criança de 8 anos já sair no bate-boca com professores do primário.
Ou de falar demais dentro da sala, não com coleguinhas, mas de perguntas e mais perguntas, de me botarem na diretoria, por causa disso, por fazerem o ERRO CRUCIAL de me mandarem dar uma voltinha na biblioteca. Essa Realidade Estática sempre me deixou intrigada com as conformidades, não as deformidades. O padrão me é enjoativo, mas passável (Assim como minha existência até agora). Mas viver de padrão pode prejudicar sua criatividade.

Cair na Biblioteconomia não foi milagre ou decisão acertada, foi como um destino emaranhado de fios de diversas cores e grossuras fossem sendo costurados lá pelas fiandeiras, até uma catar o olho da outra irmã e apontar praquela manhã de pseudo-castigo na biblioteca fosse o fator decisivo de uma vida inteira de:
1 - esconder as minhas perguntas dos outros e fazer o trabalho sujo eu mesma (descubro sozinha blergh!)
2 - encontrar a profissão que amo de paixão e ninguém vai me convencer o contrário disso
3 - saber o que raios tou fazendo nesse plano de existência e o que posso fazer pra suportar um tempinho aqui sem causar tanta destruição contra mim mesma

Porque a destruição tá bem perto, sabe?
O Caos reina em uma mente que não sossega 24/7, nem quando medicada, ou exausta, ou enquanto dormindo.
Isso irrita.
Porque voltar ao estado normal das coisas não existe desde meus 7 anos (a memória de funcionamento do meu processo de entender o mundo é nessa idade, antes são borrões, flashes e um medo insano de me aproximar de pessoas). Tentar me adequar também é um problema, sempre dá erro 404.

Voltar a caixinha não rola, porque essa caixinha não foi uma opção que pude escolher, de entrar e ser domesticada ali dentro. Em outras caixas mais apertadas e blindadas sim, nessa da padronização não.

A criatividade, que insisto que veio de parte externa do sistema - afinal ter lembranças de uma amiga imaginária continua sendo meu atestado de quase insanidade - continua povoar a cuca aqui. Nunca me atrapalhou em cumprir meus compromissos,mas às vezes me fez apressar passos daquela precaução que a criança introvertida assustada com pessoas já planejava antes de ter tino que se proteger é bom, mas se blindar é algo péssimo.

E hoje vendo duas crianças no ponto de ônibus, cada uma dançando uma música que não existia materialmente, me fez pensar no que o mundo considera como sanidade e loucura. Esses pequenos vislumbres de criatividade espontânea das crianças estão em todos os lugares e até quando elas estão se esforçando pra forçar uma passabilidade de "Hey adulto babaca, sou normal tá. Aqui meu atestado de eficiência no status quo. Continua sua vida".

Na Educação é onde vejo mais esses focos de criatividade acontecerem com mais frequência - tanto pro bem quanto pro mal - e que infelizmente a própria Educação com "e" maiúsculo sufoca e esquarteja.

Não há um dia em que eu não acorde com uma ideia nova na cabeça, que mesmo que impraticável (maioria), vai me puxar pra outros cantos, não tem uma noite que não boto a cabeça no travesseiro e não esteja pensando em algo, possível, palpável, durável ou completamente platônico. Não há algum momento durante o dia em que não passe sem viajar na maionese com algum tópico.

Porque eu alimento a criatividade com o pouco que dá em dias como esse.

Duas crianças dançando desajeitadamente em um terminal de ônibus lotado de pessoas em uma massa amorfa de corpos, em um ritmo que não existe pra gente ouvir aqui fora (será que era o Ranganathanga?!) já me fez correr pra esse bloco de notas e escrever um pedaço de conto. Tem pessoas que gostam de contar, outras de narrar, outras de escrever. Fico com a tarefa de escriba mesmo, escrevendo pra não esquecer, rememorando com o que é possível recuperar nesse músculo falho nosso chamado cérebro.

Mas entre amigas imaginárias, despertares de novas percepções, convivências com um cérebro barulhento e insuportável em algumas situações (vai lá fazer prova de processo seletivo com uma música nada a ver tocando no looping dentro da cuca e ser obrigada a pegar um rascunho, escrever a powha da letra pra ver se o treco é expelido pra poder se concentrar), todo mundo tem o potencial de não esquecer aquela criança de antes, a de ideias lokaças e jeitos mirabolantes de se ver o mundo chato.

Até lá, conservando a sanidade aos pouquinhos.

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