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28 agosto 2019

Metáforas com cozinhas vazias

Tem essa cozinha vazia, com azulejos recém colocados, imaculados na brancura e rejunte impecável. Ela é enorme, tem paredes bem azulejadas até o teto.
Há um eco gigantesco soando a cada respirada, a cozinha vazia com o eco.

E há esse único objeto no centro da cozinha, o utensílio doméstico de um liquidificador na máxima potência, triturando coisas que parecem não ser feitas para as pás de um liquidificador. O barulho é ensurdecedor de tão ecoante nessa cozinha enorme azulejada até o teto.

Há ali uma janela, um pouco aberta, de onde escapa ou adentra mais outro som cafofônico de um bode balindo em prantos ferido tragicamente no baço na janela.

O liquidificador parece engolir o balido do bode, transformando no vai e vem do eco alarmante um grito gutural bizarro que sai de uma garganta rasgada por cacos dos mesmos azulejos imaculados de rejunte perfeito.

Tudo ecoa em um volume inaudível de tão alto que é, derrotando qualquer outro ruído, barulho, produzido por objeto inanimado ou não.

Do eco da cozinha azulejada, do liquidificador triturando objetos aleatórios em um redemoinho infernal, do bode na fresta da janela, do chiado grotesco de um peito que na porta da cozinha está presenciando essa sinfonia esquisita e angustiante em cada acorde macabro e desafinado que pode produzir.

Do peito chiado, coração quebrado, ouvido estalado, uma voz do outro lado de toda a barulheira infernal chama atenção.

É baixa, é conhecida, é confortante, é segura.

A voz declama Vinicius de Moraes sem temer a barulheira. Até parece fazer troça com a confusão. Até parece rimar com a expiação. 

A voz dita poesia.
Poesia que insisto dizer que não entendo.

Porque a barulheira é alta demais pra ouvir qualquer coisa além daquilo que o eco quer ressoar.

As palavras da poesia não me atingem de primeiro.
Mas a voz?
Baixa, familiar, confortante, segura, adorada.
A voz não ecoa nessa cozinha vazia, mas me puxa pela mão, me coloca sentada ao chão, com a poesia que ainda não compreendo as palavras, mas a voz?

A voz me faz sentar e deixar a barulheira infernal lá na cozinha, me abraça sem eu pedir, me acaricia sem eu saber que é carinho.

Percebo que ao não ouvir mais aquele eco da cozinha azulejada, eu estava implorando o tempo todo. Debaixo de quilos de armadura de grossas placas e um elmo tão pesado que não sustenta mais uma cabeça. 

"Desculpa, desculpa, por favor, por favor..."

Esse peito chiado de ouvido estalando implorando pra algum som agradável me tirar de perto dessa barulheira infernal.

Não sou de implorar.
Jamais peço clemência.
Nunca deixo meu escudo baixar.
Não fui criada para ceder.
A minha lança triturada pelo liquidificador.
O balido trágico do bode atingido no baço na janela.
O eco não vence mais essa batalha

Nunca tirei meu elmo sem um motivo aparente.
Jamais abaixei a cabeça para ninguém.
Não fui criada para ceder.
Sem armas, sem armadura, sem elmo, me mantenho ao chão, recebendo o abraço, o carinho, a voz ainda ditando o poema.

E todas as cantigas amorosas parecem fazer sentido.

(quero apenas ter forças pra arrancar essas placas, ir naquela maldita cozinha de eco ensurdecedor, destruir o liquidificador em pedaços e dar um fim honroso para aquele bode desgraçado que me persegue)

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