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09 agosto 2017

A apatia nossa de cada dia


Lembro desse momento em que chorar, gritar, demonstrar sofrimento ou angústia não costumava surtir efeito pra alguma resposta lógica para o turbilhão de coisas bizarras acontecendo dentro da cabeça: a apatia pareceu ser uma companheira bacana de se manter por perto. 

Até porque se você não demonstra nada, logo não há como usarem suas emoções contra você, certo? O famoso gaslighting que sofremos quando a sociedade nos lê como corpos femininos frágeis e passíveis de estragos irreparáveis. As pessoas mais fortes que já conheci nessa vida eram mulheres (identificadas com o gênero feminino) e todas não demonstravam suas fraquezas como forma de barganha (como muitos acham que pessoas com algum tipo de problema psicológico faz). Ao contrário, escondiam porque sabiam que seriam julgadas automaticamente pelo tribunal de causas realmente mínimas

O de ficar em silêncio por muito tempo contribuiu para a afeição com a apatia, era nesse espaço em que conseguia colocar as ideias em ordem na cabeça. Só não esperava que a depressão pudesse transformar ela em catatonia. Por mais calmo e quietinho que esteja aqui, a minha vida interior (que definitivamente pode ser colocada como uma outra existência além da exterior, ou todo mundo é 100% honesto com o que realmente é dentro e fora?) é bem alta e ensurdecedora às vezes. Lembram de Roller Coaster Tycoon? Aquele game de construir parques de diversões com trocentas coisas ao mesmo tempo acontecendo e sons advertindo o que precisava ser feito/consertado? 

É mais ou menos assim em dias normais...


É por isso que não paro de pensar em coisas pra fazer. 
É por isso que quando paro de fazer isso, o barulho aqui fica sufocado como se colocassem um pote de vidro de conserva em cima da minha cabeça (o pote precisa ser grande, tá?). Nada entra, nada sai. Muita coisa vem filtrada ao extremo, pouca coisa vou reter até normalizar. 
Esses são os dias ruins. 

E esses estão ficando comuns de uns tempos pra cá, com tanta bagunça a ser colocada no lugar, prioridades mudando e saúde se tornando algo no topo da lista de "coisas que realmente me importam nessa vida". Ter tato com as pessoas ou dar a mínima para vida alheia não estão mais nessa lista e definitivamente ter disposição de compreender o que raios tá acontecendo foi uma que risquei no começo do ano. E a tia apatia (rimou) ajuda nisso mais que pensava. 

Mais um gift do Moz pra demonstrar o blasé anos 80 nos esquema?! Bora!


08 agosto 2017

Não parece, mas alguém aparece

Aquelas reminiscências de época de licenciatura sempre aparece.
Em uma conversa awesoooooome com a pessoa querida da Fran, resgatei algumas lembranças da época da graduação de Letras, os apertos que todo metido a docente vai passar algum dia e lembrei desse guri que foi uma experiência de alfabetização que deu errado - conforme o que a escola queria e a universidade dos Stormtroopers esperava em seus relatórios e estatísticas. 

O que eu devia fazer na época era ajudar alunos como ele - não regularmente alfabetizados em séries mais altas - a conseguirem no mínimo escrever o nome direito e saber o alfabeto. O carinha tinha 12 anos, tava parado na 2ª série (equivalente ao 3º ano agora, crianças entre a faixa de 8 a 9 anos), depois da bagunça estadual da reforma do ensino feita por certo governador almofadinha, agora senador com péssima reputação por conta de lava-jatos.

Crianças como ele ficavam retidas por um bom tempo até desistirem, haver um milagre docente, ou eram aprovados sem saber fazer uma conta direito pra desencargo de consciência do Estado. 

Era um bairro da periferia do vilarejo brejeiro, eu ia pra lá a pé na ida porque precisava chegar animada, motivada, ativada pra dar aula de reforço pra aquela gurizada ligada no 220v. Foram 8 meses nessa, eu, uma estagiária da biologia super zen, uma da matemática que passava um dobrado por não saber o que fazer e outro da psicologia pra fazer pesquisa de campo. Em geral a gente dava apoio aos professores das séries iniciais, dentro da sala de aula, eu preferia ficar com a galerinha que estava fora de sala de aula (aulas de educação física, horário alternativo pelo ensino integral) aprendendo com eles. E eles me ensinaram muito. 

04 agosto 2017

As mesmas razões


Há coisas que me pergunto volta e meia, como saber se o mesmo motivo de alguém entornar uma garrafa de vodka barata ao meio dia no meio da semana é o mesmo que sufocar todas as emoções em ser um autômato em uma sociedade que não vai te aceitar mais. 

O bêbado do Pequeno Príncipe sabia o que tava falando

Talvez seja pra comemorar, talvez seja pra esquecer , talvez pra se esquentar, mas era meia garrafa de vodka barata ao meio dia de uma segunda-feira. Então, moradores de rua, ou pessoas em situação de rua.


Sempre lembro dessa velhinha andarilha errante que apareceu no albergue do vilarejo-brejeiro um dia, ela com mais de 70 anos, eu só com 19 e a pergunta: "Por que saiu de casa?

Porque ela não aguentava mais viver encarcerada em casa, servindo de empregada pros filhos desempregados, foi viúva cedo, morava lá pra cima. Norte de Minas? Não, nordeste, norte de lá. Veio andando, porque gostava de andar. Explicação simples.

Me foi permitido apertar a mão ossuda dela, desejar boa estadia na casa de passagem, ela foi ver o terço na TV católica local. Eu voltei pra casa me perguntando o que fazia uma senhora daquela idade andar sozinha por tanto tempo sem parecer que sofrera tanto. Por que alguém faria isso?! Minha mãe deu a notícia que o as depois ela aceitara a passagem de volta pra casa. Ninguém viu se pegou mesmo o ônibus ou chegou lá mesmo. Uma página virada, outro número no estatístico. 

11 anos depois de sentar ao lado da velhinha pra almoçar no albergue onde minha mãe trabalhava, noto que eles se amontoam  ao redor de prédios públicos como Assembleia Legislativa, monumentos históricos. Por que alie não em outros lugares? 

(FYI já ouvi de um morador de rua lendário da cidade onde morava que engravatado sente culpa e dá dinheiro pro café. Ele particularmente só pedia pingado e um pãozinho mole pra comer debaixo da ponte onde morava e não queria sair de jeito algum)

Não há crianças de rua no trajeto onde passo com a concentração de sem teto. Há poucas mulheres. Na Praça XV eles passam o dia, a noite é nas marquises do prédio fodão da Previdência Social. Há pedintes nas escadarias da Catedral? No que consigo perceber, não. 

Mochilas abarrotadas de coisas e utensílios, vejo graduandos caminhando pelo campus, alguns moradores de rua declarados, outros fazendo couch surfing pra garantir um lugar seguro pra dormir. Muitos são de fora da capital, interior, passaram no vestibular com a ideia de que ir pra capital iria tudo ser mais tranquilo. O custo de vida é alto, a cobrança social é alta, a repressão policial é tensa, o olhar de asco do Outro é perfurante. Viver nas ruas porque não tem condições de se manter conforme a sociedade diz que é o mais adequado. Viver nas ruas porque não aguentava mais seguir conforme a sociedade diz que é o mais adequado. 

Talvez seja por isso que assistir um deles, os invisíveis, botando meia garrafa de vodka barata pra dentro em plena segunda-feira faça sentido nessa lógica de percepção.

30 julho 2017

[eu não sei fazer poesia] Aluga-se


Quando tenho tempo para esticar as costas dentro do busão
e levantar o olhar para a paisagem lá fora,
o que me deparo é essa realidade
bem diferente que a gente tem aqui no chão. 

Da imensidão de construções na beira mar
com suas fachadas estonteantes,
para mais adiante termos mais desses construtos
mini-jaulas-gaiolas-com-redes-grades,
alumínio em janelas,
varandas lotadas de roupas a secar,
aluga-se

Dentro das gaiolinhas,
pessoinhas vivendo um padrão acima da maioria. 
Pequenas caixinhas
de concreto para pessoinhas. 

É dar um upgrade no Purgatório.

28 julho 2017

Corpo alien-ado


São onze e vinte da manhã, sol já a pino, calor entorpecido, joelhos moles, mochila cheia de livros didáticos inúteis, mais livros da biblioteca, mais uma pasta com letras de música, o caderno de 20 matérias, um walkman quase despedaçado no plástico que o reveste, coberto por muita fita isolante, um par de fones de ouvido que não supre a vontade de estourar um tímpano com o que está tocando na fita cassete de 60 minutos (a de 90 faz a rotação ficar lenta), tudo que dava pra gravar na rádio local. 

Possivelmente onze e quarenta, caminhada de mais de 20 minutos atravessando avenida, subindo morro, moletom preto. Enquanto colegas de turma usam jeans e camiseta prata enfrentar o clima louco da roça brejeira onde está enterrada há quatro anos, prefere o moletom, enorme, duas vezes de si, capuz, é 33° graus naquele dia. 

Escondida em plena vista. 

Essa cena meio que volta a minha memória quando encontro um adolescente enfurnado em casacos mesmo quando está um sol de rachar - e por morar em um estado onde o frio é tenso, isso acontece às vezes na primavera e verão e parte do outono. Enquanto ouço galera achar um absurdo a atitude antissocial do dito adolescente (esse código de vestimenta que é um porre), eu me lembro como era esconder meu corpo por debaixo daquele tecido quente mesmo arriscando uma desidratação básica ou insolação ao me encapuzar com camadas de tecido para manter meu corpo intacto dos olhares dos outros. 

Porque o olhar do outro incomoda, rasga qualquer tecido, o julgamento, o desejo, a repulsão, a comparação (essa me foi a mais desesperadora possível no padrão do binarismo de gênero), a submissão. 

Essa última que mais me aborrecia, internamente eu não suportava a ideia mínima de que meu corpo serviria para alguém além de mim mesme.

27 julho 2017

O que fica pra trás


Quando a gente desiste de ser trouxa, muita coisa fica pra trás, umas que dava pra conservar, mas que por precaução vamos manter bem dormentes e trancafiadas pra não cair na mesma trouxice. Outras a gente deixa porque senão endoida o cabeçote. 


Debaixo do link, catarse.

25 julho 2017

Biblioródias - canção de escárnio


Fiz uma canção de escárnio pra quem mais amo.

E para momento literário fofuxo, deixo a definição de canção de escárnio, ok?
(Sim, vai ler na Wikipedia, tou aqui pra repassar a informação, não pra dr aula de Literatura.)

A gente vive numa caixinha, povo.
Não vamos negar.
O mundo lá fora é tão vasto e cru que é óbvio que irei ficar confortável em um lugar só e não cuidar de selvagens dentro das escolas,
Selvagens atrás das grades
Selvagens enfiados no mato nos confins do Brasil.

Não sou assistente social.
Não sou explorador aventureiro
Não sou babá de ninguém
Não sou como esse povinho aí

Nasci da elite mais refinada da erudição europeia,
Vim fugido pra essa terrinha abençoada em que tudo nos dá
A falta de culhão de monarquia atrasada culturalmente
Filho de herdeiro, de fubá, de sinhá
Achando que ser doutor é o topo da cadeia alimentar

Claro que na cadeia alimentar, toda espécie tem sua evolução.

Se ontem eu digeria burocracia pra escovar os dentes com os dicionários,
Hoje sou obrigado a virar jurássico,
Empoeirado com essa moçada que adora desconstruir paradigma com bisturi tecnológico.
Mas meu amigo, paradigma é temporário,
Sempre se eu fui paradoxo
Até que prove ao contrário
Ou "seje menas" nessa canção de escárnio

Faço parte de uma "profissão em extinção"
Computadores chegaram revolucionando a forma de obter informação?
Continuo aqui.
No mundo a Internet mudou a configuração?
Continuo aqui.
Inventaram outra nomenclatura pra designar o que faço (só que com mais bytes, mais outros termos científicos que você quiser adotar).
Continuo aqui.

Sobrevivo.
Tenho lei e tudo.
Escolas de louros espalhadas no país,
Escola que limpa mouros, esses não entram aqui
Escolas que higienizam ensinando algo que dizem que ninguém mais precisa
(tem a Wikipedia e Doutor Google agora)

Formo uma minoria de elite, branca, especialista em qualquer coisa que sirva no momento.
Conhecimento de tudo para servir de nada
Gratuito? É de graça, com a minha salvaguarda
Educo neutralidade em cada passo que ajudo o pupilo dar.
A lei me garante.
Os decretos também.
Minha imparcialidade se confunde com apatia que é só um reflexo do meu comodismo.
E ainda assim, continuo.

Desde Alexandria.
Desde a primeira dinastia.
Desde a primeira vez em que a escrita esteve presente na sua vida.
Continuo.

Sabe por que não faço mais que deveria?
Por que alguém vai fazer por mim,
Essa molecada com as fuças grudadas em tecnologia.
Esse é o desejo deles, não meu.
E eu continuo.

A quem sirvo não é pra todo mundo,
Não é pra ser,
Que meus teóricos preconceituosos, sexistas, machistas,
Crias de um sistema de manutenção permanente do patriarcado,
Estejam mais certos que qualquer outro de outra área.
Perpetuo os manuais sem averiguar as pistas
De uma violência muda, surda e cega

Conhecimento é poder.
Informação é a única realidade.
Eu tenho a chave.
E eu continuo.

Mude os termos, as nomenclaturas, as ementas, as leis, os decretos, os códigos, os anseios, os afetos, o chão a lamber, mude, se mude, faça upgrade.
Eu continuo.

Um monumento em homenagem a inércia.
Eu continuo
Te encarando como esfinge, dando a charada e penalizando seu mínimo erro.
Eu continuo
Devorando seu fígado, e você acorrentado
Eu continuo
Sendo a pedra que se precipita no alto do penhasco infinitas vezes
Eu continuo
Um diploma, um canudo, um juramento me habilita
Eu continuo mesmo assim.

Você, você faz reformulações, reedições, renovações.
Como todo organismo deve ser reinventado para se legitimar nessa sociedade desigual.
Eu continuo, não permaneço, óbvio!
Mas aqui, continuo.

Eu continuo! (tá me vendo aqui?)
A profissão que será "extinta" daqui alguns anos
O profissional que "não serve pra nada"
O "trabalhador encostado" que reclama demais
Ninguém pediu sua opinião, eu existo
(você também, caro amigo, você também)
Eu existo desde que homo sapiens começou a fazer conexão com as sinapses do sistema nervoso
Talha, cunha , argila e arconte
Pergaminho, papiro, hierofante
Continuo, tou aqui, tá me vendo?

Tudo na ordem? Tudo no progresso ?
Identidade, CPF, comprovante de residência e 2 contatos por favor?


05 julho 2017

[conto com angie] o esquecimento

Título: O Esquecimento (por BRMorgan)
Cenário: Projeto Feérico.
Classificação: PG-13.
Tamanho: 1.654 palavras.
Status: Completa.
Disclaimer: Esse conto faz parte de algum rascunho perdido meu do Projeto Feérico que vocês podem ver os pedaços sendo costurados aqui nesse post [x]. Esse plot me foi narrado há 5 anos atrás. Resolvi fechar um ciclo que estava precisando ser terminado.
Personagens: Gaimer Jones (Stardancer), Angie.
Resumo: O Tempo passa diferente para os feéricos, os mais velhos sentem isso diferente. Para aqueles que se esquecem do Sonhar, as consequências são muitas. O Esquecimento é um dos mais tenebrosos acontecimentos que um feérico pode sofrer em sua longa vida. Angie sabe muito bem disso. 
N/A: ouvindo In Every Sunflower do Bell X1 no repeat?


A porta de madeira, a tela da varanda meio comida no chão pelos cães de anos atrás, enterrados por padecerem de velhice no quintal dos fundos. O clima da primavera de um sol tórrido lá fora no asfalto e o mormaço habitual do começo da tarde. O som baixo da vitrola localizada em cima da geladeira, a rádio local dando informações da tempestade que caíra dia atrás na cidadezinha. 

Seu telhado sobrevivera por pouco com a ventania e os galhos quebrados espalhados pelo quintal da frente. Dentro de casa era como uma muralha de sentimentos medidos e calculados. Ali entre a tela da varanda para proteger de mosquitos e moscas, ruminava com sua miopia:
Quem bateria a sua porta essa hora da tarde quente?

Na poltrona deixou seu objeto de trabalho, a talha para madeira, o objeto esculpido em uma das mãos, os passos lentos causados pelo avanço da idade. 

Chave menor.
Chave maior .
Uma virada no trinco sem óleo.
Trinco com corrente de correr.
Porta de madeira primeiro .
Tela da varanda depois. 
Estava esquecendo de algo? 
(Sim, perguntar antes de tudo quem estava na porta) 

A cozinha era menor que lembrava, tantos anos atrás.
Cada coisa em seu lugar.
A mesinha farta de lanchinhos da tarde, ocupada por livros velhos, encerados, encadernados. Pequenas peças de madeira, gatos em miniaturas bem detalhadas, pintados a mão, alguns com detalhes tão vivos em pedrinhas coladas, outros em poses esquisitas esperando uma crítica menor. 

O barulho do microondas chamou atenção dos dois ocupantes daquela cozinha minúscula.
Um bipe mecânico que anunciava a saída de algo a se sorver amargamente.
Café requentado.
Para a visitante com leite tipo C para ficar ralinho.
Açúcar.
Muito.
Ainda perguntaria para essa visita regular o porquê de tanto açúcar. 
O médico dissera que açúcar fazia mal. E ovo e queijo e carne e manteiga. Comia pão molhado no café para satisfazer o gosto. Era melhor assim, o médico disse. 

- Você parece bem... - a menina disse trêmula. Ela sempre tentava esconder o medo na voz. Pigarreou para responder, era o começo de conversa afinal. Ser educado com a juventude era algo que aprendera no centro comunitário. 
- Ando fazendo exercícios... Ajuda a manter o pique. 
- Bacana, tranquilinho... 
- E você, como está? - ela deu de ombros, ela sempre fazia isso quando queria enrolar. - Não tá aprontando lá naquele hotel, né? 
- Oh não! Tou dando aula pros grandões agora... Cê lembra do Quentin? Ele tá dando futebol pra criançada...
- Isso é bom...! A verdadeira felicidade no caminho da sabedoria é aquilo que passamos para os mais novos... 
- Oi? - falaram quase ao mesmo tempo.
- Sim? - cada um em seu tom de voz surpreso.
- Isso que você falou agora. 
- O que eu disse? - ele coçou a cabeça com a parte achatada da escultura que tinha começado ainda não mão. A menina foi até ao microondas, tirou o pote de tampa rosa do compartimento. Não lembrava de ter colocado aquele pote ali, muito menos de ter um pote assim. Hermético, com furinho a vácuo. Hmmmmm, prático. - Oh sopa! Legumes? 
- Como cê gosta... - ela disse com um sorriso trêmulo, servindo a mesa para dois, na companhia dos gatos de madeira, pratos fundos, colheres um pouco tortas pelo uso. Não estava frio ali, o termostato do dia era de tarde quente lá fora. Perguntaria a ela o porque de estar sempre tremendo. - Emílio mandou lembranças e caprichou no temperinho... 
- Oh sim, sim... - uma colherada se multiplicou em várias. Logo seu prato esvaziou, a colher torta deixada no fundo. Barriga cheia, gostava dessa sensação. Assim como pegar o sol da manhã quando caminhava pela vizinhança. Gostava das visitas da menina também, mas não lhe agradava o jeito como ela usava roupas.

Chamariam ele de velho rabugento, mas ela costumava aparecer como se tivesse saído de uma briga. Ou acidente de carro. 
Era essa a expressão que lembrava para descrever ela.

- Bem, bem, bem... - ele anunciou acariciando a pança avantajada da idade.
- Gostei dos gatinhos com pedrinhas... São muito bonitos. - ela comentou timidamente.
- Oh sim, levei alguns para o centro comunitário! Esses aqui são os que mais deixam as pessoas felizes... - apontando para os enfeitados com tinta especial, pedrinhas cintilantes e traços longos nas pernas. 
- São muito lindos mesmo... - lembrou se de repente que havia feito algo especial para a jovenzinha, levantou-se com dificuldade do banquinho da mesa cheia de coisas e estalando a língua, gesticulou para chamar atenção da menina que observava o seu prato de sopa ainda pela metade, frio, e uma colher torta segurada por uma mão trêmula.

Será que ela tinha tanta fome para tremer daquele jeito?
Alguns colegas do centro comunitário tinham problemas de locomoção, equilíbrio, coordenação. Faziam fisioterapia, tomavam remédios, visitavam seus médicos.
Conseguiam ter uma vida boa. 
- Espere aí, sim? Tenho algo para você... - Ele começou sua empreitada frustrada de lembrar onde tinha colocado o presente para... Para... Qual era o nome da mocinha...? Estava na ponta da língua. 

Gavetas. 
Armários. 
Debaixo da cama. 
Atrás da cortina.
Entre as almofadas do sofá.

Ela falava algo lá da cozinha minúscula, não conseguia ouvir direito pela surdez parcial em um dos ouvidos, mas a idade também prejudicava o seu entendimento. 
- Seja lá o que esteja procurando... Queria que soubesse que... 
- Calminha que vou encontrar, sim, sim... - retirando livros grossos de capas de couro e decoradas com fina caligrafia em seus títulos. 
- Eu não trocaria por nada do mundo por ter te... 
- Será que deixei na garagem? Sempre deixo coisinhas na garagem, parece coisa de velho gagá ... - Ele caminhava para lá e para cá, tentando agora lembrar do que procurava. - Oh sim! O seu presente! 
- N-não precisa, Sr. Gaimer... 
- Claro que precisa! Fiz para você, quero que fique com ele... Pra guardar de lembrança. 
- Vai valer a pena ter essa lembrança... - o sorriso dela não tremeu, foi de orelha a orelha, tristonho, quebrado, como uma despedida.

Ele parou no meio da sala, camiseta de fundo azul com uma estampa de girassóis por todos os lados, de botões amarelos, calças seguradas com um cinto novo (De quem ganhara, não lembrava), cabelos grisalhos ralos e longos bem presos no cocuruto com um elástico sem cor. Mocassins sem meias. Ele usava um relógio enorme no pulso agora.
Os dois se olharam em silêncio.
Como em uma despedida.

 - Eu não trocaria por nada nesse mundo... Por ter te conhecido...
 - Menina, você não terminou essa sopa, hein? - ele disse quase automaticamente. Não entendia porque ela ter se encolhido no lugar, como um bichinho enjaulado.
 - E-eu... - a voz vacilante, o sorriso trêmulo, tudo estava ali, mas o que era não sabia. Uma fungada profunda com um suspiro - Eu não trocaria essa dor horrível que sinto aqui dentro por nunca ter te conhecido... Você sempre foi o melhor pra mim... Sempre vai ser o melhor de mim...
 - Mas o que você está falando, hein? - o sotaque dele estava diferente da última vez que se lembrava. - Vamos, termine a sopa aí e venha me ajudar a... O que eu tava procurando mesmo?
 - Olha pra mim, por favorzinho?
 - Oi?
 - Stardancer...? - ela pediu com lágrimas nos olhos. - Olha só um pouquinho pra mim? Eu não quero esquecer disso.
 - Disso o quê? - ele deu de ombros como ela fazia quando não sabia como responder uma pergunta. Ela puxara isso dele. Em algum segundo entre respirar fundo e piscar, ele teve uma pequena fagulha de memória antiga: um caminho iluminado pelas estrelas, uma música muito bonita, uma dança, um teto cheio de pedrinhas coloridas, gatos de verdade, uma vida que não se lembrava mais de ter tido. - Menina, você tá bem?
 - Eu vou ficar. E você também. Quero muito que você fique bem.
 - Oras, não precisa chorar, hein? - ele disse se aproximando dela em passos cuidadosos, não sabia o que estava acontecendo para ela ficar tão emotiva. Ela deu um passo para frente, como se quisesse dizer algo, assim de repente, se retraiu ao mesmo tempo, segurando o corpo em um abraço em si mesma.
 - Eu te a... - a batida na porta interrompeu o momento. Gaimer Jones arrastou os pés até a porta para ver quem era a visitar.
 - Deixe-me ver quem é que está na porta, sim? - ele disse com um sorriso ameno. A jovenzinha devolveu com um aceno de mão.

Primeiro a chave menor, depois a chave maior.
Uma virada no trinco sem graxa, trinco com corrente de correr.
Porta de madeira primeiro e tela da varanda depois.
Estava esquecendo de algo? 
Perguntar antes de tudo quem era, Gaimer.
Como esquecia de uma coisa dessas?
Abriu a porta.
Era a cuidadora com as compras.
Legumes, frutas, farinha e fubá.

 - Sr. Gaimer, já em pé? - ele olhou ao redor na sala de tantos móveis e quinquilharias suas.
 - Sim, sim... Me senti disposto essa manhã... - ele disse coçando a cabeça com a parte achatada da escultura em que trabalhava algumas horas.
 - Bem, isso é bom! - a cuidadora de idosos do condomínio residencial em que Gaimer Jones, renomado fotógrafo, explorador de savanas, lugares exóticos e países fora do mapa. Ela tirou as compras das sacolas e com uma voz calma e monótona puxou conversa. - O que acha de sopa? Capricho no temperinho que você tanto gosta... - ela disse com uma voz mais instigante. Era como ela ganhava as discussões.
 - Sopa é ótimo! - ele coçou a cabeça novamente e encarou seus mocassins. Será que esquecera de alguma coisa e não conseguia lembrar o quê? Olhou o seu relógio de pulso, parara de funcionar há 13 minutos atrás.

 - Está procurando por alguma coisa, Sr. Gaimer?
 - Não, não... Acho que acabei me confundindo de novo com o que fazer... Meu relógio pifou. - mostrando o pulso para ela.
 - Está tudo bem mesmo? - a cuidadora perguntou com mais ênfase. Ela fazia perguntas demais quando achava que ele estava ficando gagá.
 - Sim, jovenzinha... Não precisa se preocupar, hein? Vou voltar ao trabalho, tenho 2 gatos para terminar antes do almoço...
 - Oh e para quem será esses presentes tão adoráveis...?
 - E-eu não sei... - ele respondeu para si mesmo, testa franzida, um pote de tampa rosa que não era seu ali na mesinha da cozinha minúscula. Estava esquecendo de algo que não...?

...

(Alguns ciclos precisavam ser completados. Outros caíam no esquecimento)

04 julho 2017

[conto com angie] humanidade é carvão

Título: Humanidade é carvão (por BRMorgan)
Cenário: Projeto Feérico.
Classificação: PG-13.
Tamanho: 1.150 palavras.
Status: Completa.
Disclaimer: Esse conto faz parte de algum rascunho perdido meu do Projeto Feérico que vocês podem ver os pedaços sendo costurados aqui nesse post [x]
Personagens: O Devorador de Sonhos, Angie.
Resumo: Quando uma criatura primordial do Sonhar decide sair da Neutralidade, é isso que acontece.
N/A: Trilha sonora? Vai ver o post anterior, sim? ;)

Piscar os olhos.
Piscar.
Umedecer esse órgão novo.
Dois órgãos novos.
Muitos novos de muitos como os outros.

Quando o Vazio era o único sentido, agora o emaranhado de órgãos amontoados em um fluxo quase perfeito. O universo inteiro engendrado dentro de si, de si, como um ser vivente.
“Só eu sei...
Só eu sei...”
Dizia a velha canção...

E doía.

Em uma manhã chuvosa em algum lugar de algum lugar. Diferente do que estava acostumada em outras vidas. Ser vivente agora. Poderia categorizar as suas experiências em outros tempos como “vidas”. Era dessa forma que os Filhos mais novos entendiam o Tempo, a Sina, a Morte, o Destino.

E nessa chuva desgraçada que molhava os ossos.
(Ossos, ossos, nervos, músculos, sangue, fluidos, ritmos)
Nessa chuva que entrava em cada poro, orifício, encharcando alma, espírito, película fina de essência de glamour puro despedaçado para abrigar esse corpo frágil, real. Ser vivente real. Vivo.
Ritmo de tambores, barulho do mar, quebra das ondas, ritmo, canção, Vida.

E doía.

Os órgãos que piscavam focalizaram a sombra ali, bem perto, ao lado da comoção no beco sujo e cinzento da Metrópole. Fazendo as últimas anotações em seu livro anterior. Aquele maldito livro que carregava acorrentado em seu corpo como um mártir da própria existência. 
Juiz, carrasco, júri, advogado, vítima, acusado.
Julgamento. Neutralidade. 
Era isso que se lembrava de outros mundos.
Não lembrava do porquê estar doendo.
De qual crime que cometera para sua Sombra estar ali, tão perto e tão longe, observando corpos vivos em uma roda irregular, exclamações altas, gritos de agonia. 

Neutralidade. 
Deve ter sido isso.
Quebrara com a regra que não se quebrava: Neutralidade.
Juiz, carrasco, júri, advogado, vítima, acusado.
Julgamento. 
Neutralidade. 
Era isso que era no Mundo Além dos olhos dos Filhos mais novos.

A Neutralidade que nutria em seu ser vazio era o horror dos Filhos de Danuu. Temerosos por estarem sendo julgados sem perceberem (Como se fosse possível), horrorizados por existir personificações da Sorte, da Sina, da Morte, do Destino. E isso os abusados Feéricos morriam de medo: pregados eternamente em um Destino diferente dos Filhos mais Novos, Destino desconhecido, silencioso, cruel, devastador. 

Banalidade.
O mundo preto e cinza.
A perda do Glamour.
O fim da Magia.
O insuportável vício pelo Tédio.
A destruição completa de uma alma tão antiga e carregada de Sonhos.

O Fim.
(Fora isso que questionara? O Fim?)

Em outro piscar lembrou de vozes, muitas vozes, vociferando acusações, uma jaula, um palanque, uma forca, um espetáculo, uma multidão. Cabelos de fogo, diferentes dos seus. Um antigo, primitivo, antes deles mesmos, renascido, selvagem em seu estado catatônico de nascer. A Vida foi devolvida antes do esperado. Sentia isso se tivesse órgãos para sentir, coração, emoções. Julgamento sem seguir a Lei Maior.

Sem Neutralidade.
(Fora isso que questionara?)

A execução pelas mãos de outrem. Mesmo suas palavras sendo proferidas. 
Profetizadas. 
Algo sobre o castigo de um crime maior. 
A Traição na Casa de Fiona.
(Fora isso que questionara?!)

O que seria real?
Por esses olhos recém-abertos via que aquele mundo de antes não agradaria seus Ensinamentos, sua Lei Maior, seu Caminho Prateado. 
Não desistiu, escolheu.  
Por que não escolher? 
Em definir quem deveria acolher.
“Só eu sei o que será
De nossos sonhos
Só eu sei o que virá
De outros mundos
Pra dizer...”
A velha cantiga ia e voltava, como um eco em um precipício sem fim, repetia com os tambores, as ondas do mar, os ritmos de um corpo vivo então: “A Humanidade é carvão em meu suor, então saí da minha cela...”

Cinza era o céu, a manhã chuvosa no beco de algum lugar da Metrópole.
Nada mais era como antes achava. Acordou no chão sem entender a confusão ao seu redor.
(Por que doía tanto? Por que não reconhecia mais sua Sombra, acorrentada no imenso livro da Neutralidade?)

Acordou no chão, despido, minúsculo, dolorido e sem razão, e percebeu que foi desconstruído de seu vazio, castigado para a renovação. Da boca de um estranho vivo, imundo, maltrapilho, vagabundo, sem teto ouviu as primeiras palavras em seus ouvidos agora atentos ao mundo:
“Óia só esse tiquim de gente! Vestida que nem acidente de carro!”

Risos.
Choro.
Agonia.
Saiu da cela.
A jaula do vazio da Neutralidade.

O que era real?
“Só eu sei o que será
De nossos sonhos
Só eu sei o que virá
De outros mundos
Pra dizer...”

A música retumbava em seus ouvidos vivos. Os olhos pequeninos em uma cabecinha de recém-nascido, parto sofrido e acidental debaixo de um viaduto em uma manhã chuvosa. O cheiro veio aos poucos. O tato, dedos trêmulos sem coordenação. O paladar amargo, as nuances de uma existência que jamais tocou comida ou bebida.

E doía.

A sua Sombra se afastou lentamente, sem dar Adeus, dar explicação. Apenas uma lembrança que não mais ficaria ali, entre a vaga impressão de uma ilusão e uma alucinação. Tentou se movimentar naquele corpo gelatinoso sem sustentação. Frágil, sem orientação. A memória definhava, desintegrava como areia em um deserto infinito. O ritmo dos tambores codificado para o seu coração pequeno, no peito descoberto, a comoção urrava.

Sirenes.
Gritos.
Agonia.
E doía.

“ – Todo mundo pra parede! Todo mundo pra parede! Agora!”
“ – Afasta aí vagabundo! Tira a mão!”
“ – Não força a barra senão leva chumbo nas fuça!”
“ – Ajuda aí, seu puliça! Ajuda!”
“ – Falei pra ficar de cara pra parede, porra! Mãos na cabeça, abre as perna!”

A Fome.
Com tudo no mundo dos Filhos mais novos iria se acostumar, com uma habilidade invejável de transformar Sorte, Sina, Morte, Destino em ferramentas para ajudar as pessoas. Mas a Fome?
Essa permaneceria.

“- Bota essa coisa aí no camburão! Levar pro Hospital, porra!”
“ – Leva nossa anjinha, não, seu puliça!”
“ – Cala essa boca, vagabundo. Tá vendo a merda que deu aqui?”
“ – Chama o rabecão, véi... Tem jeito não...”
“ – Deixa a nossa anjinha aqui, seu dotô puliça... A gente cuida dela...”

Estampido, alto, forte, cheiro de pólvora.
A Humanidade é carvão em seu suor, vestida como um acidente de carro.

Piscou os olhos.
A maldição dos antigos em seu corpo renovado.
Esquecimento.

Era uma manhã chuvosa de 1969.
E a Humanidade deslumbrava a ida à Lua no mesmo dia.
Não se lembraria de quem era até segurar a mão de Stardancer em um beco imundo como aquele em alguma parte de alguma cidadezinha ao redor da Metrópole.
Não se lembraria do que era capaz de fazer ao entrar naquele ônibus-quimera em 2013 quando o meteoro caiu lá do outro lado do mundo.
Quando conseguiu enganar um de seus antigos associados.
Quando voltou a entrar no Caminho Prateado sozinha.
Quando voltou ao Vazio e se lembrou de que Neutralidade fora seu pior pecado.
Vagueava nessa realidade para não voltar mais àquela ilusão.

03 julho 2017

[videos] a luz e a sombra/branco por scalene



Ainda vou ter forças para escrever algo sobre a Angie inspirada nessa música. Porque, olha só, pqp gente! Essa guriazinha eshu changeling não sai do meu campo gravitacional de escrita (tentei, tentei, não deu!) e volta e meia tem algum rascunho não processado aqui na fileira, no celular, nos cantos de páginas de textos acadêmicos.

O que para alguém que escreve deve ser uma maravilha, para alguém que NÃO QUER escrever sobre ela nesse exato momento da vida tá se tornando insuportável. Não no sentido da palavra que me aborrece, mas o de não caber mais nos feelings. Há muita coisa para se falar da Ângela Filha dos Ventos, há trocentas estórias para narrar, estruturar, redigir, editar, desgastar, vociferar, desmantelar em lágrimas, porque é isso que essa chuchuzinha faz comigo quando vem aquela inspiração das Musas.

Essa letra em especial me chamou atenção mais pela parte final da primeira música (A luz e a sombra), que é basicamente o dilema da vida da Angie no mundo Feérico. E eu levo à sério demais a concepção de personagem da mocinha, ela se estruturou de emoções que eu mesma estava experimentando na época, para então haver aquele elemento inexorável de "coincidência" (Chamem do que quiser, magia, feitiço, ligação entre dois pontos, telepatia, lalalalala i can't hear you...) e depois plim! Surge essa coisinha bizarra vestida como um acidente de carro para me atormentar de tempos em tempos.

Também tenho minhas limitações quanto ao escrever sobre ela, porque por um lado não quero dar muito spoiler e ao mesmo tempo nem apresentei ela para o mundo como queria. Talvez deva ser isso mesmo, o limiar entre o escrever apenas para mim mesme e/ou não escrever coisa alguma, ter uma contraparte fictícia me cutucando continuamente para me lembrar sobre um projeto que mais me faz querer gritar de agonia por não saber mais como escrever do que me dar boas risadas como antes.

É a fucking vida de escriba.
Alguma coisa sempre vai ser deixada para trás entre a papelada.

Acordei no chão
Despido e sem razão, e percebi

Desconstruí, nos renova
Só eu sei o que será de nossos sonhos

Só eu sei o que virá de outros mundos
Pra dizer:
Pelas ruas eu procurei
Só preto e cinza encontrei
Como irei reinventar minha sombra
O que será real?
Dessa janela eu via que o mundo atual
Não me agradaria
Por que não escolher?
Eu mesmo definir qual devo eu acolher
Só eu sei

Assim como o maldito coelho da Alice, sinto que com a Angie, estou sempre atrasade.