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08 setembro 2013

[conto] nunca duvide do zelador

A madrugada se estendia quando sua vida era cercada de códigos para se desvendar, segredos para se criptografar, mensagens para se codificar e reter mais líquidos para hidratar o corpo curvado e cansado que a maioria de seus "colegas" de profissão.


Ser a programadora júnior do laboratório de banco de dados de uma grande universidade não era algo que ela almejava em sua curta vida. Era um emprego bom, pagava as contas, mantinha sua dieta fraca e nada saudável, conseguia ter mais acesso a lugares mais distantes do que ao fazer sozinha em casa em seu modem mixuruca impregnado de limitações dos Tecnocratas, ali na universidade o poder de alcance era explorado ao máximo, para que assim ela pudesse estar conectada a Realidade Virtual sem ter o incômodo de ter alguém espreitando pelo seu cangote ou ter a Polícia Secreta batendo na porta dando voz de prisão por "crime virtual".



Não era crime, era liberdade. Espalhar a informação, qualquer que fosse, era libertador, não um ato criminoso. A população mundial vivia cercada de informações, inúteis na maior parte do tempo, e pouco usava-as contra o sistema em que viviam, tão concentradas em quererem ser aprovadas por ele que esqueciam que eram elas que controlavam o Tear de todo o processo. Com um sorrisinho discreto, digitou mais alguns códigos e conseguiu acesso a duas instituições de caridade famosas mundialmente e com um leve toque no botão de copiar e colar de seu mais novo projeto (Um programa auxiliar que literalmente sugava tudo que ela raciocinava em meros segundos para o seu avatar virtual na Grande Rede sema necessidade de cabos ou qualquer outra coisa que pudesse acusar aos Ternos Pretos¹ que ela estava "burlando" novamente os parâmetros da Realidade Estática²) repassou cerca de 5 milhões de dólares de milhares de investidores endinheirados com suas contas secretas e invioladas em ilhas bancárias para a conta das instituições, sem nem alertar a Receita Federal e muito menos dar bandeira para a C.I.A. saber da movimentação estranha e simultânea. (Algo passou pelo canto de seus olhos que a fez piscar algumas vezes, resetando uma linha de código que formava sem digitar no programa em que trabalhava, essas distrações apenas aconteciam quando ela estava no metrô da cidade, ali perto daquela cabine telefônica desativada e sempre após às 23h)

Fazia aquele mesmo movimento por muito tempo e até então ninguém percebera na sua discrição, no seu sorrisinho falso atrás de uma máscara de olhos profundos e olheiras, os cabelos vermelhos desgrenhados e os fones de ouvidos coloridos. Ninguém sabia o quanto ela era capaz de modificar tudo a sua volta com apenas um clicar no mouse, um piscar de olhos, uma linha de pensamento lógico, racional e consecutivo. Apenas uma pessoa no andar do laboratório em que trabalhava até horas na madrugada para consertar o erro de outros "colegas" (Não tinha amigos, tinha aliados, como um lobo solitário na Grande Teia): o zelador obviamente imigrante e de poucas palavras. 

Ele correspondia os sorrisos cansados que ela dava, acenava quando ela entrava ou quando ia embora, trocavam algumas palavras no idioma dele (Era um inglês misturado com o sotaque hindu incompreensível por outros) e às vezes ficava por um tempo no canto da sala, preparando cafézinho ralo enquanto ouvia o homem também curvado e cansado papear sobre o tempo, as notícias de sempre, a velocidade como as coisas iam.

O zelador prezava as poucas conversas e ela, por mais incrível que parecesse em sua vida solitária desde sempre, gostava da presença dele no andar quando estava sozinha no interminável trabalho. Não havia nada de errado com esse sentimento mútuo e por vezes, a programadora júnior chegou a pensar se ele não era um stalker, mas ao trocar um olhar ou palavra com o homem de pele diferente e sotaque estranho, ela entendia que os dois pertenciam a mesma frequência de Realidades. Talvez fosse uma impressão dela, mas por muitas vezes, ela olhava para ele de propósito, tentando jogar fórmulas e equações de códigos que só ela sabia manejar e manipular para saber se ele também sabia de seu segredo, se sabia que atrás de cada parede, cada tela eletrônica, havia uma Realidade Ideal completamente diferente dessa em que viviam. As respostas eram sempre vagas e o papo sobre o tempo, as notícias cotidianas e a velocidade de como as coisas ali eram tomavam conta de suas teorias.

A verdade é que era difícil achar alguém parecido. Ela era única ali, no meio de tantos seres inteligentes, de QI superiores a maioria do restante do mundo, gente que tirava PhD. em novas tecnologias, administração, gestão de dados, mas nenhum, nenhum mesmo compartilhava a graciosa e doce Revelação. E quando encontrava alguém online que fosse um pouco mais inteligente que ela, sempre se decepcionava quando sabia das atividades da outra pessoa - encontrar alguém com a outra metade do cérebro funcionando era raro. Se a vida era para ser solitária, ela lidaria bem com isso, mas por ora, ali naquele andar, no laboratório de tecnologia e informação da universidade, no meio da Metrópole, ela compartilhava mais um sorriso sincero e cansado com o hindu que esfregava o chão calmamente, com seus fones de ouvidos pequenos em seu rádio de baixo custo e obviamente ultrapassado.

O momento de calmaria foi instantâneo, como se a conexão que ela tinha impressão de haver antes fosse religada. Um segundo de troca de informações tão valiosas que os sorrisos compartilhados morreram no mesmo instante em que uma das portas do andar abriu. Um dos programadores sênior chegava arrastando o passo, pasta de couro na mão, camiseta social amassada como se houvesse dormido com as roupas. Pelas condições do cara, isso era normal de se ver em uma universidade, mas de madrugada? Poucos se interessavam ficar para um corujão em um final de semestre, ainda mais um sênior. Estranhou o tear que se formava em volta do colega de classe, de como alguns nós se perdiam em um emaranhado de pequenas falhas na estrutura do espaço e tempo ali na frente. O hindu parou de esfregar o chão e caminhou calmamente com seu balde e esfregão na direção da mesa onde ela trabalhava, mas foi interrompido pelo sênior com uma ordem qualquer sobre pegar um copo de café novo para ele o mais rápido possível.

O zelador obedeceu, mas antes de ir para o fundo do imenso laboratório cheio de baias com computadores e equipamentos, deu um olhar alarmado para ela. Não entendeu de imediato aquela mensagem que ele enviara com um simples gesto humano, olhares a confundiam quase sempre, mas aquele ela jamais esqueceria. Voltou a colocar os seus fones de ouvido na cabeça e aumentou o som de alguma banda barulhenta para se concentrar nas próximas operações que queria fazer o sol amanhecer - tanto pouco tempo, tanta coisa para se resolver! - e ali ficou, em uma teia própria que gostava de fiar para si mesma na Realidade Virtual.

Ao digitar alguns comandos para trocar de servidor e ir para um mais escondido na Deep Web, percebeu que uma das linhas que acabara de mentalizar estava trocando a numeração o tempo todo. Não estava confusa ou emocionada, parecia que o código estava se tornando autônomo, transformando a linha e o parágrafo de tags, números e complicados esquemas em uma única mensagem invisível para os olhos dos comuns:

"7@ 47R@S D3 VC"

Ela virou-se imediatamente em sua cadeira e viu o sênior a poucos passos de distância, a encarando animalescamente como jamais vira alguém fazendo.

 - Tudo em riba, aê veterano? - ela perguntou em um sussurro só para ter certeza que o emaranhado emanado no Tear daquela Realidade estava terrivelmente danificado. O grunhido vindo do homem maltratado a alertou para levantar da cadeira giratória e deixá-lo bater com toda força no monitor em que ela trabalhava. - Mas que porra é essa, cara?! Tá maluco?! - ela exclamou esganiçadamente percebendo que algo estava errado naquele código ali, algo estava fora do lugar, algo estava faltando. Faltava aquela cadeia tão conhecida de algoritmos que dava certeza na checagem de dados de que a pessoa estava viva. Alarmada, ela tentou gritar o hindu, mas teve a boca tapada pelo sênior e seu rosto virado com violência para o lado, expondo seu pescoço de finas veias que transpareciam em sua pele nunca castigada pelo Sol.

A mordida foi feroz e dolorosa. Nada como nos filmes e muito menos parecido como nas instruções deixadas no Spy's Demise³ sobre alguns seres sobrenaturais que encontrariam por esse mundo imperfeito e material da Realidade Estática. Gritando sem poder vocalizar nenhum som, ela foi sucumbindo ao poder e força do sênior vampiro e no último instante em que pode ler um pouco do que acontecia ao seu redor, sentiu que seu corpo tombou na mesa de trás, sangue escorrendo em profusão pelo ferimento causado pelo homem morto-vivo. Com olhos turvos pelas lágrimas e perda de consciência, ela deslizou para o chão em um choro convulsivo pelo choque da experiência, não sem antes testemunhar cabos de rede, fios e transistores do seu computador emaranharem em volta do pescoço do sênior vampiro, o estrangulando rapidamente ao ponto de fazer sua cabeça descolar grotescamente de seu corpo gelado e morto há horas atrás.

A Teia de Fé parecia bem nítida para ela agora, como se houvesse compilado o melhor código de todos e finalmente pudesse upa-lo para o server universal, sentiu-se acolhida por um instante, um sorriso bobo em seus lábios ressequidos, assim como seus olhos se fechavam para essa Realidade que vivera por poucos anos e odiara cada dia de sua existência imperfeita.

Acordou sacudida gentilmente por uma enfermeira no Hospital Universitário, uma senhorinha de cara feia e semelhante a um buldogue rabugento a chamava sem poder ouvir o som. Tudo estava muito confuso, a compilação do código agora estava desalinhada, sem revisão e definitivamente toda arruinada, teria que arrumar tudo de novo quando pudesse sair dali. Olhando ao redor e afastando a mão da enfermeira chata, ela tentou mover-se para entender o que ocorrera, mas seu olhar parou na porta para o corredor do Hospital, o zelador hindu passava por ali com seu esfregão amarelo mofado e o balde, limpando devagar o chão, radinho alaranjado pendurado na cintura do uniforme, fones de ouvidos baratos, erguendo a cabeça para ela e trocando o mesmo olhar que trocavam sempre: entendimento, proteção, compartilhamento de Realidades.

Ele era como ela, senão melhor.

A enfermeira rabugenta se assegurou que a estudante não saísse do lugar fincando bem o soro em uma de suas veias e saindo do quarto cheio de outros pacientes em estado dormente. A garota de cabelos avermelhados continuava encarar o servidor, agora com lágrimas nos olhos (Uma das poucas vezes que demonstrava emoção ou gratidão por algo ou alguém) e murmurou um "Obrigada", a resposta foi um sorriso verdadeiro e um murmúrio de volta:
 - Nunca duvide do Zelador...

---xxx---

N/A: Muitas notas de rodapé...

¹ - Ternos Pretos - Homens de Preto, Agentes Smith, agentes de elite da Tecnocracia que são especialmente treinados para caçar os Magos e eliminá-los. Muitos dizem que esses caras são androides tão perfeitos que podem se passar por humanos sem problema algum.


² - No cenário de Mago - a Ascensão - o conceito de Realidades é omo se fosse a eterna colcha de retalhos emaranhada de fios e nós, há 3 possíveis Realidades vigentes: 

  • A Estática - essa em que vivemos todo o dia, com relações culturais pré-estabelecidas e pré-determinadas, um sistema firme de regras, condutas, leis intrínsecas as nossas vontades e instintos. os fios dessa Realidade são monitorados pela Tecnocracia, que controla o Mundo para manter tudo em "ordem". Poucas pessoas percebem na estrutura sólida e estática dessa Realidade e assim como em Matrix: "Muitos estarão dispostos a morrer para manter essa ordem universal".

  • A Dinâmica - essa Realidade está tão emaranhada na Estática que é difícil de conseguir separar uma da outra, além de ver os nós, as falhas e as sobreposições dos fios da colcha de retalhos (Ou Grande Teia ou Tear), apenas os Magos conseguem vê-la e fazer todo o movimento de moldá-la ao seu bel prazer. Fazer isso traz benefícios e também consequências, a Tecnocracia percebe logo quando isso acontece e todas as formas de contenção são usadas para não danificar o plano geral do equilíbrio acordado pela Tecnocracia.

    Tenho essa teoria que a Realidade Dinâmica é o Todo, enquanto a Estática é uma sobreposição bem maquiada da Realidade. Se pensarmos no universo de Matrix, a Dinâmica é o mundo da Matrix, a Simulação, e a Estática é o mundo real devastado pelas máquinas, então vamos dizer assim em grosso modo: "A vida é um Sonho." - o que me remete totalmente ao conceito primordial de Changeling - o Sonhar: cada pessoa no mundo ao estabelecer o contato com o Sonhar acaba criando uma realidade (Ou os nós ou os fios) e cada um vai sendo ajustado conforme o cronograma da Tecnocracia. Sonhar não faz parte da natureza humana, mas o ser humano para ser mesmo um ser humano deve nascer do Sonhar e não necessariamente ser um ser real.
    Fuck this, tamos na Matrix e Changeling reafirma gostosamente isso! *headexplodes*

  • Realidade Virtual - atualmente estamos na 1.5 e alguns bocados, porque a Perfeição é chegar na 2.0 levando TODO MUNDO no Planeta Terra, sendo Mago ou não, para essa Realidade sem a Tecnocracia ficar no pé. Já está acontecendo o movimento para isso entrar em vigor daqui alguns anos (A inclusão digital e acesso a tecnologias avançadas já é um sinal que estão conseguindo...), mas cabe aos Adeptos da Virtualidade fazerem o trabalho direitinho para não causar um desastre (Sabe a do "morrer para proteger a Matrix" e tal? Pois então...). A Realidade Virtual surgiu no mesmo momento em que o pai da Informática Moderna, Alan Mathison Turing, "morreu" em 1954. O desligamento de corpo e consciência de Turing foi tão impactante na Grande Teia de Fé que constitui nossas Realidades que abriu uma fenda temporal/espacial (Saiu desamarrando nós e criando novos fios na colcha de retalhos com dimensões desiguais e totalmente difíceis de se colocarem em ordem) que essa Realidade apenas funciona através da conexão com equipamentos eletrônicos, ondas de rádio, internet, e por aí vai. O avatar criado na Realidade Virtual tem seu poder ampliado over9000 por poder ter liberdade de se movimentar sem as leis da Física (Mas não fique animado, a Tecnocracia também está na Grande Rede e ela te observa o tempo todo) e dependendo do Mago que o manipula, acaba se transformando numa extensão do próprio corpo da pessoa (Neo feelings? Yep!)

O radinho de pilha alaranjado é um objeto recorrente de qualquer estória que eu escreva, ele é um easter egg para algo relacionado aos personagens que já possuíram e que possuem o bendito do radinho. Não sei o que raios ele faz, mas deve ser algo bem awesome.

A figura do Zelador também é tratava várias vezes nos meus contos por uma Razão: ele é uma entidade que se manifesta de diversas formas - o Mendigo do Arges em Rosenrot, o velho galanteador no Bingo da 3ª Idade no Projeto Feéricos, etc - possivelmente é um Mago que atingiu a Ascensão em algum Reino do Horizonte (Mais provável de ter conseguido isso na Realidade 1.0 que Alan Turing criou ao "morrer" em 1954) e voltou para poder encontrar e ensinar outros Adeptos da Virtualidade.

A garotinha ruiva foi inspirada por essa criatura perfeita aqui:

Felicia Day como Charlie Bradbury em Supernatural.

³ - Spy's Demise era um lugar comum da Realidade Virtual lá no cenário de Mago - a Ascensão. Era onde os Adeptos se encontravam para postar coisas aleatórias e deixar manuais/tutoriais sobre o que os noobies deveriam aprender para chegar a algum lugar ali.

Chega de notas de rodapé!

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