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30 agosto 2016

[feéricos - contos para sonhar] certas leis se repetem



A história se repete. 

Se repete. 
Repete. 


Vira boato, anedota, fábula, esquecida em algum canto, mas se repete e repete e repete.

O toque breve entre mãos, dedos trêmulos em outros rígidos pelos anos. Um sorriso trocado, automático como uma desculpa pela intrusão do gesto. Papelada espalhada pela mesa de sinuca, meia-luz, mais livros no chão e pastas de arquivos no sofá maior. O sorriso tímido de uma pessoa traz a certeza de uma teoria para a outra.

A história se repetindo.

- Descansa um pouco, vou preparar um chá pra gente. 
- Eu quero chá e bolinhos! - exclama alguém fora da cena, do outro lado da janela enorme da sala de estar do Hotel. A menina eshu brinca na chuva, dançando com um cão exageradamente grande para sua raça (um vira-latas com o dobro de tamanho), os dois ensopados pela torrencial da tarde, o cão caçando o próprio rabo e raspando suas garras no concreto sem produzir nenhum arranhão aparente. 
- Angie, você acabou de detonar com o pacote de biscoitos que o Smithers deixou na cozinha... - admoestou a líder do grupo, mas já sabendo a resposta. Seus olhos podem estar na menina animada perto da janela para o pátio dos fundos do hotel, mas seu corpo reagindo lentamente as pequenas mudanças na atmosfera ali dentro da sala de estar. O quanto a temperatura aumentou após o toque na mão da pesquisadora recém chegada ao grupo, como qualquer movimento é cuidadoso e silencioso, a respiração acelerada com alguns suspiros mais profundos para manter tudo em perfeito estado. 


A história se repetia novamente.

Para testar a superfície das águas, aproximou-se da pessoa e mansamente acariciou suas costas começando por um ombro, até a nuca exposta pelo corte desregulado de cabelo. A sensação foi imediata, um pulo de surpresa, a respiração cessada, o coração... Bem, o bater do coração era algo que intrigava Raine sobre Kristevá. 

- Volto já. 
- Beleza... - respondeu ela em um fio de voz. 
- Quer comer algo? Acho que tem alguma coisa ainda na despensa que a pestinha não tenha devorado. 
- Pestinha é o seu traseirinho real, oh Regina!! - gritou a menina lá fora correndo para lá e para cá, cabelos negros longos soltos ao sabor do vento e sendo perseguida pelo cão enorme em uma brincadeira confusa de pique-pega. 
- Regina? - perguntou a pessoa surpresa. Raine sorriu para o chão como se não fosse um assunto muito bom para se abordar a essa hora. A meia-luz não estava ajudando, os olhos escuros da pessoa a encaravam com aquele tão conhecido pecado que os feéricos eram suscetíveis quando deixavam as emoções aflorarem. 
- Um de meus nomes... 
- Oh sim... É um bonito nome... - a pessoa disfarçou seu interesse repentino com um suspiro baixo e foi até o sofá pegar uma das pastas de arquivo. Raine a observava quase clinicamente, ombros tensos, lábios ressequidos entreabertos como se alguma palavra fosse escapar dali (mas não iria, o autocontrole era algo que a pessoa prezava mais que tudo), as mãos trêmulas procurando o que fazer, tateando mais folhas antigas, despregando clipes de amontoados deles, recolocando outros clipes em pilhas novas feitas sistematicamente. 

- Kittie... - sua voz denunciou o que já temia de antemão. A história se repetindo da forma mais banal possível. E como odiava a banalidade nesses casos. A pessoa novamente deu o pulo de surpresa, não esperando a reação produzida pelo timbre grave da voz da líder do grupo de caçadores de quimeras. 
- O-oi? Sim? - O olhar agora era de súplica, algo como um pedido silencioso para dar uma parada nos assaltos emotivos. Ou para outra coisa, Raine não entendia bem como os humanos pediam por migalhas de atenção e afeição. 
- Você não respondeu se gostaria de comer algo... 
- Oh! Oh! Me desculpa! Estava tão conc... 
- Eu vou querer bolinho de chuva e geleia. - a menina eshu disse pulando pela janela para dentro da sala, o cão tentando fazer o mesmo, mas sendo parado pela mão de Angie. - Usa a porta Toby. Seja educado! 
- Mas você pode pular a janela e arruinar o tapete? - questionou Raine com as mãos na cintura, esse pequeno movimento mudou a sensação já sufocante na sala, a postura tão acuada e tensa, deu lugar a uma... submissão. 

Era esse o efeito que Raine causava nos humanos que não conheciam seu verdadeiro-eu, a forma feérica que fazia com que os guerreiros mais honrados se ajoelhassem aos seus pés e monarcas titubearem quando lhe dirigiam a palavra. Raine odiava esse trato feérico com todas suas forças. Odiava ver pessoas dispostas a obedecerem qualquer ordem em pestanejar. Odiava saber que seu poder oculto era inspirar grandes comoções entre as pessoas - humanas ou não - mas tudo através de uma manipulação emocional que não era de sua vontade. Ângela não parecia ser afetada por isso, mas respeitava a líder por outros motivos. 

- Tá, tia! Foi mal! - balbuciou a eshu caminhando cuidadosamente para o Hall de entrada e abrindo a porta pesada para o grande cão entrar, a figura esqualida e trêmula de frio do garoto Tobias apareceu, segurando as roupas molhadas em volta dos quadris para tapar suas partes íntimas. - Oh Tobinho, quando cê vai aprender a colocar uma tanguinha na hora que virar lobinho? Sou obrigada a ver essa gostosura toda sua aí não... - O rapaz ficou tão envergonhado e vermelho que correu para debaixo das escadas onde era seu habitat natural murmurando muitas desculpas. Kittie abriu um sorriso bobo, como uma criança que finalmente entendia o significado de uma charada.
- Ele é...? - apontou na direção das escadas, Raine concordou com um sorriso morno, feliz de ver que a tensão que causara pela sua alteza se fora. Angie espremia as roupas encharcadas e grandes poças se formavam no chão e logo secavam. 
- Não sei do que você reclama chefia, o Zé do Hotel mantém tudo nas ordem, véi... Certo, Zé? - exclamou para o alto e um rangido foi ouvido vindo das paredes, como se houvesse engrenagens entranhadas nelas. Aquilo não assustou Kristevá, Raine notou. Sua presença sim, já o fato de uma construção quase centenária ter "vida" própria e realizar os trabalhos de limpeza e conservação do local não. Era surpreendente. - Sem medos, manas... Os esquemas aqui é firmeza. E aí, rola bolinho? - Kristevá pigarreou como sempre fazia para atrair atenção. 
- E-eu p-preciso voltar para... Ahn... Para o Hospital... Não posso... - Raine sacou o celular do bolso e discou um número no speed-dial. Apontou para o telefone antigo ali perto da porta para Angie pegar. 
- Nada disso. Essa quimera pode causar mais estragos que estamos acostumados e precisamos de você aqui. Ângela, faz favor de ligar pro Emílio e pedir quentinha pro grupo? Dupla, será uma longa noite... 
- Mas... O médico vai... - a voz denotava angústia, apreensão, medo. Raine sabia o que faziam com Kittie quando ela desobedecia ordens do semiaberto do Hospital, deixou o sangue que raramente fervia em suas veias subir até o pescoço e ainda com o telefone no ouvido, foi até a pessoa mais nova em aparência, mas tão antiga quando qualquer um ali. 

A mão livre encontrou a nuca desprotegida de Kristevá e em um gesto de proteção e carinho, aproximou seu rosto do dela, um beijo estalou na testa ossuda da pessoa, para então roçar os lábios na pele tão fria da pesquisadora. 

- Eu prometi cuidar de você todos esses anos, agora você está sob meus cuidados. Você fica aqui hoje ok? Tudo bem para você? - O mesmo olhar de súplica, o entrecortar da respiração, o coração que não dava sinal de vida. Afinal, o que Kittie era? E por quê essa conexão tão instantânea?
- Tudo bem... Não quero incomodar... Eu não consigo dormir assim bem fora dos remédios... 
- A gente não vai dormir... - respondeu Raine rapidamente. Angie sufocou a risada e foi para o telefone que não tinha linha ligar para Emílio. 
- Hey, tio... Manda rango esperto aqui pra nós? Reunião do Clubinho, beleza? É... Bota uma marmita a mais, tem gente nova no pedaço... Urrum, e dobra o trem que vai ser uma daquelas noites... Não, não, a Chefia que pediu pra eu ligar!! Véi cê acha que o telefone funciona na minha mão sem aval da Chefia? Oh tia, fala pro Emílio que foi você que me mandou... - Angie parou de falar no mesmo instante, pois ao ver o fio prateado (aquele mesmo que Angie se desvencilhava quando passava em uma trilha no Vazio) de Raine enroscar vagarosamente nas mãos e braços de Kristevá, ela entendeu a última peça do quebra-cabeça.


A história se repetia.

Como deveria ser, como todo bom contador de histórias, o bom cancioneiro, o poeta mais tolo tanto descreviam: não importava o que os dois mundos se digladiassem pelo poder, pela supremacia, pela aniquilação do tradicional, a história se repetia. 
- Tio Milho? Traz uma garrafa de café também? A noite vai ser loooonga...










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