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08 outubro 2021

bora falar de úteros


Fio original aqui no Twitter.





Bora falar de úteros? É como pessoas trans não-bináries convivem com eles? Se alguma radfem alegar que a gente quer roubar os delas, podem ficar com o meu, a criatura causa problemas desde meus 11 anos.

Vamos chamar meu útero de Gremlin. Pois ele era fofinho e cutch-cutch durante um tempo, para depois virar um serzinho caótico mau-mau-como-picapau na maior parte do tempo.

Eu tenho uma condição chamada endometriose - que basicamente faz com q as menstruações sejam mais problemáticas e fluxo intenso e as dores serem intensas ao ponto de pedir arrego. Haja remédio esses 23 anos. Eu achava a minha condição normal, até julho de 2020.

Junto a endometriose tem um combo genético de:
1) hipertiroidismo que eleva/abaixa taxa de hormônios no meu corpo - Gremlin ama isso.
2) disposição hereditária a miomas uterinos - Gremlin pipocado de mini-bolsinhas de inflamação a cada menstruação e maximizam a dor.

Como eu disse: Eu achava a minha condição normal, até julho de 2020. Até perceber que pessoas trans com útero como eu sofrem disso com bem mais frequência do q imaginava. Menstruação q adoecia todo mês, causava estragos permanentes e tchanan! Sem grana pra absorventes externos.

Com essa bomba-relógio alocada no colo, literalmente, Gremlin decidiu dar uma reviravolta em 2020. Ele decidiu juntar todos os anos de confinamento e me fazer desmaiar sem antes eu botar meus bofes pra fora por conta da dor excruciante.

Acesso ao ginecologista em pandemia foi assim: 1) fazer freelas toda semana pra custear os R$ 220 da consulta em particular. SUS não estava atendendo esse tipo de especialidade. 2) ter q encarar profissional cis fazendo especulação de algo q estava nas últimas consequências

Gremlin decidiu me dar anemia profunda e uma internação de 6 dias no Hospital Regional, lotado, na área da maternidade. Se eu tivesse disforia aflorada, com certeza não teria sobrevivido minha gente. Mas estadia foi boa, tentei tirar proveito da desgraça acontecendo.

Comecemos com o acesso à saúde pública/privada para corpos trans não-bináries: Inexistente. Vai ser o jogo de empurra-empurra - joga de um especialista para outro - e vai ter muitas perguntas indiscretas, sem dó. Sensibilidade na área da Saúde é algo raro. E a maioria de nós não temos recursos para particular ou estão perto de postos de saúde/hospitais. Auge de pandemia complicou também, profissionais impacientes e nada receptivos. Meu corpo era lido como feminino e bem... a gente sabe que feminino não presta e é descartável. A dor que eu sentia (De virar do avesso) foi minimizada algumas vezes. É comum sentir cólica. Não é comum você ficar paralisade por dias de cama por cause dela. Não é comum vc se entupir de remédios fortes pra apaziguar. Não é comum desmaiar do nada pela dor. 

Mas de acordo com a Medicina moderna, tá tudo certo!

O acesso à saúde inexistente já nos tira esse direito básico e coloca a seleção natural de corpos em evidência. A gente não vai ao médico pq morremos de medo de vcs tratarem a gente com lixo descartável. E guess what? É isso q vcs fazem.

Se a gente não tem o básico, o que fazemos? Alternativas. Uso de drogas lícitas e ilícitas pra apaziguar a dor. Se deixar entrar em depressão profunda por conta da dor. Internalizar q tá exagerando na dorzinha. Até saber q ela não é normal. Aí alia isso a uma política de extermínio de nossa gente em diversos âmbitos. Não é q quero roubar úteros das radfem, quero ter condições de cuidar do meu sem perturbar ninguém. Mas perturba.

Nossos corpos trans não são para existir nessa realidade. A cisgeneridade não quer nossos corpos existindo. E os mata conforme as oportunidades aparecem. Eu quase empacotei por anemia profunda (olha o ponto q cheguei) e não foi por falta de cuidados.

Acesso inexistente, atendimento cisheteronormativo sexista. Para quem já foi em ginecologista sabe as perguntas q fazem, sabe q o estranhamento vai ser visível, sabe q sempre vai ter constrangimento de dar o mínimo de informações pra evitar mais constrangimento. Não é todo profissional da saúde q tá preparado pra atender fora dos padrões vigentes de binaridade de corpos. É inadmissível boycetas, mulheres com necas, batatinhas como eu sermos assexuais. Fica complicado quando Gremlin está para dar a cartada final de dor.

A condição q tenho piorou muita coisa aqui abaixo do umbigo. Inclusive me fez rever todos os conceitos e limites de relações românticas e sexuais q tive e estava tendo. Ser demiromantique/demisexual dá a "vantagem" de não passar tanta raiva com coito, mas afeta nossa cuca. Ter endometriose e o combo q tenho me faz impossibilitade de ter filhos (Graças, obrigade patrones!), mas isso não é a realidade desejada de mis colegues, amigues que sofrem o mesmo. Tem gente q quer família e gerar vida, sabe? Afeta a cuca e de com força

Aí eis o discurso médico para esses corpos com problemas de útero e sem acesso à saúde pública digna: "É só uma dorzinha, vai passar." "Toma esse anticoncepcional e vai resolver." "Eis as guias para 7 exames q se tornarão mais 7 exames seguintes e..." - ad nauseam

O circulo vicioso vai virando um looping bizarro de decisões vistas pelo ponto de vista cisheteronormativo, não sobre as condições e capacidade emocional/psicológica/física de se aguentar morrendo de dor.

Tomei remédios, fiz os exames, nada adiantou. Internação, transfusão de sangue, momentos constrangedores na maternidade, perguntas intrusivas de médicos homens cis. Uma autorização para "companheiro, conjuge ou pai" para assinar como responsável em realizar histerectomia. Yep histerectomia, ou raspagem ou retirada do útero. Quando nenhum tratamento adianta, essa é a pedida. Cilada. Muito! E as conversas tensas com médico cis (q "perdeu" meus prontuários e exames feitos meses antes) convencendo q eu não iria mudar de ideia em ter filhos

Esses embates na internação foram piores do q as dores q sentia. Ou o fato de minha fobia por agulhas ser totalmente descartada com a quantidade de coisa q levei nas veias. Ruim pra cuca, ruim pro corpo. Mandei o distinto médico se ferrar e exigir conversar com a supervisora dele. E a supervisora era mulher, cis, diretora da ala toda, idosa, chegou com meu prontuário (o "perdido), com a papelada de autorização pra cirurgia e: "Vc é casada? Não? Tem pai? Não? Assina aqui pra concordar com a cirurgia q vc precisa pra melhorar, tudo bem?" Beleza, simples.

Com 1 canetada a mulher resolveu 6 dias de impasse sobre oq fazer comigo (Ou com Gremlin) pq o Estado na figura do médico anterior não queria q Gremlin fosse extinto, mesmo q me causasse dor pro resto da vida. Gremlin é mais importante do q meu bem-estar e sanidade.

Nesse rolê todo eu tava conversando com pessoas trans (internet ruleia) q relataram o mesmo problema, as mesmas dores, as mesmas dificuldades de acesso, o mesmo descaso, o mesmo medo, a ausência de políticas para corpos trans e fora do padrão binário. E a powha da falta de informação sobre procedimentos simples e de manutenção de úteros Gremlin. Sobre humanização no atendimento. Sobre respeitar pronomes e nomes sociais. Sobre saúde mental e física em situações assim. Sobre extermínio lento de corpos fora do padrão.

Pq eu aposto q se fosse pra enfiar o dedo no cy de um homem cis pra fazer ele parar de sentir dor pro resto da vida, dariam todo apoio psicológico, anestesia geral, cafézinho e pedir desculpas pelo incômodo. Mas para nós? Corpos descartáveis.

Um DIU mirena implantado, uma dívida de cartão q não termina, sem cólicas, sem hemorragia bizarra todo mês, um prazo de validade (5 anos no máximo) e mais visitas ao ginecologista para verificar se tá tudo certo, afinal não há certezas quando é sobre saúde de corpos com útero. Ontem foi a visita anual e lá fui eu ter q passar por todo aperto de recontar oq aconteceu e quando chega na parte do "eu sou uma pessoa trans e assexual" a profissional ter um pane no sistema, por quê? Não tá acostumada a atender pessoas como eu

Porque nós não vamos aos médicos por isso mesmo. Vocês não estão acostumados. Vocês não estudam sobre. Não se interessam em saber sobre. Não dão muito a mínima para corpos com útero, afinal. 2 guias para 4 exames. Uma mini-palestra sobre pessoa trans.

"Você vai querer se hormonizar?"
- Dotôra tomo T4, tem um pedaço de plástico q custou caro enfiado no Gremlin pra regular meu sistema hormonal, tou hormonizando. Se vc tiver na pílula, vc tá hormonizando também.
"Testosterona eu quis dizer."
Eu apenas apontei pro Gremlin
"Menos mal né?"
- Não seria tão ruim de cogitar sobre se eu não sentisse desde meus 11 anos q convivo com um ser das trevas alojado no colo da minha bacia. E por negligência do Estado q não dá amparo para pessoas como eu a terem tratamento correto e de qualidade.

Então assim: Pessoas com gremlins no útero, procurem ajuda profissional q não sejam compactuantes com o projeto do Estado de necropolítica a corpos trans e também sejam aliades. É difícil encontrar, mas existe pessoas assim. A gente é importante, somos válides, resistimos.

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